sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Se a velha morresse... Conto de David Gonçalves

Tinha 98 anos, rosto tão enrugado como batata passada. Ouvia a conversa entre o médico e o genro. Está no fim, dizia o médico. A velha, olhinhos pequenos mas vivos, escutava. Todos morrem, ninguém fica pra semente, pensava ela. Quanto tempo, doutor? Uns dias, é bom avisar os parentes. Não havia muitos parentes. Ela tivera uma filha, que já havia partido. Ali estava o genro, que não via a hora de se livrar dela e se apossar dos bens. Rainha da avareza, maldizia o genro. Ia levar o dinheiro e os bens no caixão? Ele vivia à míngua. A velha dava-lhe mesadas ridículas. Nem davam pra cerveja e algumas festinhas com as namoradas. Tratava-o como um estranho devorador de coisas. Estava com mais setenta anos. Se ela morresse, todos os bens cairiam em suas mãos. Sua mulher, a filha da megera, morrera de câncer. Mas ela não morria. Quase centenária. Capaz dele morrer antes. A mulher da foice a esquecera. Os amigos do dominó e da jogatina riam dele. Ironizavam: “No dia em que ela se for, você vai sorrir como nunca”.

De dia, uma mulher limpava a casa, cozinhava e cuidava dela. De noite, ele se dispunha a cuidar. A megera não queria pagar outra pessoa. Mas ele era desleixado. Fingia que não ouvia seus chamados e resmungos. Quando ia vê-la, era pra verificar se ela ainda estava viva. Ademais, tinha as noitadas de jogo. Voltava bêbado, de madrugada. Espiava-a. Dizia coisas horríveis. A velha era de ferro. Ele, por causa do jogo, devia muito. Não tinha como pagar. Se a velha morresse... Ao voltar das noitadas, quando se aproximava da casa, murmurava: “E se a velha bruxa já tiver acabado?” Encontrava-a do mesmo jeito. Chamara o vigário três vezes para dar a extrema-unção. Depois que o vigário e o coroinha saíam, ela melhorava. Acho que até ria daquelas bobagens.

Certa noite, ele se sentou à beira da cama e ficou a observar a moribunda. Tão fraquinha, cada vez mais encolhida, mirradinha, pele e osso. Aquilo ainda duraria muito tempo? Ela parecia esperar com indiferença a morte, a respiração curta assobiando na garganta estreita. Então, enraivecido, começou a falar do Diabo. Toda noite, o Cujo sapateava pela casa e vinha visitá-la, com aqueles chifres horríveis, beiços de bode, pés de pato. Chegava perto da cama dela, agarrava-a, beijava-a, os beiços cuspindo fogo, babando, e sempre rindo. Dizia afoitamente que viera buscá-la. Pintou e bordou a figura demoníaca. Percebeu que ela arregalava os olhos, mexia-se no leito, desesperada. Ah, a velha mula tinha medo do Diabo. Aquela velha cabeçuda e obstinada poderia se engasgar naquela respiração curta e assobiada...

Uma ideia súbita o tomou. Naquela semana, havia um grupo de teatro na cidade. Atores decadentes. Um deles vestia-se de Diabo e assustava as pessoas, inclusive a plateia diminuta. Foi até ele e o contratou. Uma brincadeira, disse. A velha sogra estava para morrer e pedia para ir ao teatro. Ele queria fazer uma surpresa pra ela. O ator teria que se vestir de Diabo, dançar, sapatear pela casa, ameaçando-a. Tudo farsa, é claro. Podia ser depois da apresentação, disse o ator. Sem problemas, disse o genro. Quanto mais tarde, melhor. Antes, naquela noite, junto com os amigos, comeu fartamente e bebeu até não poder. Todos repararam que ele ria muito. Ria como nunca. Aconteceu alguma coisa? Não, mas vai acontecer. Ria mais e bebia. Depois, foi pra casa esperar o ator, que exigiu pagamento adiantado. Vamos ao show, disse. Vamos ver se ela é de ferro mesmo.

O ator, um quarentão gorducho, pôs a vestimenta demoníaca – capa vermelha, chapéu com três chifres, sapatos grandes e tortos com tacos, numa mão o enorme garfo, e se pôs a dançar, sapatear, bater os tacos no assoalho, gritando: “Olha o fogo! Hoje eu vim te buscar. O quinto do inferno é o teu lugar, úúúúhhh, ahahahaha!” Gesticulava e soltava guinchos. E ria, e babava, e gritava. Foi à cozinha, pegou uma panela de alumínio e um pau de macarrão e saiu batendo pela casa, aproximando-se do leito e recuando. A velha, enlouquecida, olhar saltado, fazia esforço sobre-humano para fugir, mas não conseguia. Chegou a descobrir os ombros e o peito e colocar uma perna, só osso, fora do leito. O Diabo dançava, sapateava, gesticulava e gritava. De repente, um corpo caiu pesadamente no assoalho, no canto da casa. O genro estava morto. Assustado, o ator desceu a escadaria apavorado, deixando a velha se contorcendo e o homem estendido no assoalho.