domingo, 19 de agosto de 2018

Politicamente correto por Hilton Görresen

O velhinho acordou de bom humor e começou a cantarolar uma musiquinha de seus velhos carnavais: “Tava jogando sinuca, uma nega maluca me apareceu/vinha com um filho no colo e dizia pro povo que o filho era meu...”.

– Credo, vô! – disse a neta universitária. Que preconceito é esse contra a pobre afrodescendente? O vô pode ser processado.
– É isso mesmo – concluiu o neto mais novo – fica melhor “afrodescendente psicologicamente afetada”. 
– Então tá, me deixem cantar: “Tava jogando sinuca, uma afrodescendente psicologicamente afetada me apareceu...”.
– E se essa nega malu... digo afrodescendente for menor de idade? Aí a coisa vai complicar.
– Pode deixar. Ela não é de menor, é uma balzaquiana. Uma mulher de mais de trinta anos. O nome vem de um romance de Balzac.
– Além do mais – completou o neto – isso é uma cena de dramalhão mexicano. A mulher aos prantos com o filho no colo, acusando o malvado vilão. Quem sabe ela somente trouxesse a certidão de nascimento?
– Tá bom, se vocês querem assim: “Tava jogando sinuca, uma afrodescendente balzaquiana, psicologicamente afetada, me apareceu/ tava com uma certidão de nascimento no colo e dizia pro povo que o filho era meu...”. Tá bom assim?
A neta torceu o nariz e falou: esse negócio de jogar sinuca não fica bem na sua idade. Dá impressão que o vô não tem nada pra fazer. Fica ali com um cigarrinho na boca, empurrando umas bolinhas na caçapa. É melhor uma coisa mais moderna, malhação numa academia.
– Bóóó! – exclamou o neto. Academia é coisa pra modelos, dondocas e saradões. Fica melhor “praticando um esporte”.
– Então vamos ver: “Tava praticando um esporte, uma afrodescendente balzaquiana, psicologicamente afetada me apareceu/ vinha com uma certidão de nascimento no colo e dizia pro povo...”.
– Pensando bem, disse a neta, hoje não se pode procurar diretamente o transgressor. Vocês viram o que aconteceu com a namorada daquele goleiro. Seria melhor procurar antes um advogado. Aí o advogado mandaria um funcionário de seu escritório entregar uma notificação.
E o avô, com cara desanimada: “Tava praticando um esporte e o funcionário do escritório do advogado de uma afrodescendente balzaquiana, psicologicamente afetada me apareceu/ trazia uma notificação, com uma certidão de nascimento anexa no colo, e dizia pro povo que o filho era meu...”. Tá bom assim?
– Acho que não. Seria melhor o advogado encaminhar a notificação pelo correio.
– Já percebi – exclamou o velhinho – vocês querem é estragar a música.

(Crônica publicada no Jornal A Gazeta de São Bento do Sul em 04/8/2018)