quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Meu primo por Hilton Gorresen

Eu não estava entendendo bem o que acontecia. Diziam que a coisa estava fervendo em Brasília. O presidente Jango Goulart fazia discursos cercado de militantes de seu partido, de cabos e sargentos. De nossa guarnição militar partiu um caminhão cheio de milicos, de ar sério e olhar arredio, como se fossem cachorros no fundo de uma canoa. Para onde? Acho que nem eles sabiam o que estava ocorrendo. No dia seguinte, ouvi falarem que tínhamos nos livrado dos comunistas. Ser comunista parecia uma coisa grave. Seria semelhante a nazistas, aqueles seres disformes, maléficos, combatidos pelos super-heróis americanos nos gibis? Assumiu um novo presidente da República, como um herói da nova ordem. Mas pela sua foto não tinha cara nenhuma de herói, era um baixinho sem pescoço, de braços e pernas curtos. Uma semana depois, veio um oficial e dois ou três soldados e levaram meu primo. Minha tia, Eduvirges, chorava abraçada às filhas menores, limpando lágrimas com o avental. Gritava, desesperada: – Ele não fez nada! Deixem meu filho em paz! Não entendo, ele era um cara legal, meu herói de infância. Foi quem praticamente me ensinou a ler. Contava histórias, me levava gibis, fabricou para mim um estilingue com forquilha de pau de goiabeira. Era convocado para me fazer companhia, quando, em época de carnaval, meus pais saiam sorrateiramente ali pelas onze da noite. No outro dia, quando eu acordava, o chão estava colorido de confetes espalhados por toda parte. Na adolescência, meu primo não saía lá de casa. Tínhamos uma empregadinha meio bronca, vinda do sítio, de corpo moreno, lustroso, pés largos, bundinha empinada. Quando não o encontrava, era só procurá-lo na cozinha, dizendo piadinhas para ela, ajudando a encher a caixa d’água na bomba manual, pois tínhamos água de poço. Ele agarrava a moça por trás e dali apoiava sua mão na dela a fim de acionar o braço da bomba. Pra lá, pra cá. Uma ou duas vezes, vi-o saindo do quartinho da moça, no final do corredor. Será que minha mãe, que tratava empregadas quase como escravas, gostaria de saber disso? Ele era magro, tinha uma boca sem sorrisos, os lábios finos quase não se abriam quando ria de alguma coisa. O que mais me lembro era desse detalhe, sua boca sem sorrisos. Sua voz era cadenciada, meio monótona, parecia um trem arrancando da estação. Terminava as frases com um risinho zombeteiro, quase imperceptível. Quando eu elogiava a beleza de alguma moça, ele dizia impreterivelmente: – Já comi! – mas eu nunca o havia visto ao lado de alguma guria (com exceção da empregadinha lá de casa). Só uma vez fiquei decepcionado com ele. Havia um moleque de pele enferrujada que estava rondando pelas imediações. O moleque estranhou meu primo; com olhar feroz, chamou-o para briga. Meu primo ficou pálido, achei que era de ódio, aproximou-se do moleque de cabeça baixa e quando pensei que ia largar sua famosa porrada – tantas vezes gabada nas historias que me contava – disse ao moleque que iria chamar seu irmão mais velho. Era mentira, ele não tinha irmão mais velho. Na dúvida, o outro se afastou, não sem ameaçar: – Te pego outro dia, seu covarde! Tive pena de meu primo. Como iria convencer-me agora de suas fabulosas histórias de valentia? Contei de sua primeira bicicleta? Meu tio era pobre, escriturava livros fiscais para pequenos negociantes, e não podia comprar-lhe uma “cabrinha” nova. Arranjou uma Monark enferrujada, guidão torto, selim desbeiçado; levou um mês restaurando-a, raspou a ferrugem, pintou, trocou o selim, instalou novos pedais, até campainha. Parecia ter saído da loja. Feliz, saía de casa descendo ladeiras, dirigindo o veículo com as mãos para o alto, como um equilibrista. Algumas vezes me colocava na garupa e arrancava, tirando fininhos dos carros estacionados, derrapando os pneus nas curvas. Eu me encolhia todo, como um filhote de passarinho abandonado. Aos sábados, vestia seu uniforme de escoteiro, de calças curtas e meias compridas, cinturão com fivela de cobre – o que eu mais cobiçava – e ia acampar com seu grupo nos arredores. Me ensinou a fazer nós intrincados e a empatar anzol, para irmos pescar baiacus no trapiche. Orgulhoso, via-o desfilar na frente do grupo nos dias 7 de Setembro. Foi ao cursar o nível médio que ele se meteu na diretoria do grêmio estudantil. Era vivo, falante, com isso conquistou certa liderança. Foi levado pelos soldados sem nenhuma explicação. Para mim, sempre foi um herói. Nunca mais vi meu primo.