domingo, 24 de agosto de 2014

Entrevista com o Professor Virgílio de Mattos



O professor Virgílio foi um dos palestrantes no VI Seminário de Gestão Prisional, Segurança Pública e Cidadania com a palestra de abertura, Direitos Mínimos: por que não conseguimos garantir a dignidade da pessoa humana na prática?

CDH: Levando em consideração a situação atual do sistema prisional no Brasil, qual a maior urgência para iniciar o processo de humanização dentro dos presídios?
Prof. Virgílio: Já ultrapassamos, há muito, um ponto de “não retorno” nessa política nefasta de encarceramento total. A questão prisional não é um caso de polícia, é um caso de política pública. Se pudéssemos voltar no tempo, a 1982, teríamos que afastar de uma vez por todas a ideia maldita do “law and order” como solução para qualquer coisa. O encarceramento total só pode ser levado em conta por aqueles que lucram com isso. Há um grupo grande de pessoas e empresas lucrando com a desgraça que é o aprisionamento de seres humanos pelo mundo afora. São os donos de empresas privadas de contenção de gente, os vendedores de alimentação (sempre superfaturada e de qualidade desprezível), de uniformes, de instrumentos de contenção (desde tonfas e algemas até aparelhos sofisticados de body scan), etc. Obviamente a sociedade quando pensa o cárcere como forma de controle é porque tudo o mais está perdido. Se pudéssemos voltar ainda mais no tempo, ali pela segunda metade do século XVIII, época em que até a burguesia se dizia revolucionária, temos que a pena privativa de liberdade nasce para afastar as possibilidades de suplício físico que eram a temível e terrível antecâmara da morte sob tortura (esfacelamento das juntas, exposição na roda, a “morte natural para sempre” e outras receitas do “tudo penal”). As penas privativas de liberdade já foram um avanço. Hoje não passam de vendetta estatal, sórdida e injustificável, contra a crescente massa de sem-nada, inclusive sonhos, que lotam nossas cadeias, presídios e penitenciárias. Humanizar o sistema é muito pouco. É preciso implodi-lo. É fundamental que tenhamos uma nova forma de punir que não seja o cárcere, seja no modelo “penalocêntrico”, seja no modelo “hospitalocêntrico” (o aprisionamento manicomial consegue ser muito pior do que o cárcere “comum). Aliás, nos últimos 30 anos, que é o tempo que me dedico a pesquisar o aprisionamento, talvez a fala mais impactante tenha sido a do Ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso, quando disse que preferiria morrer a ter que cumprir pena privativa de liberdade no Brasil. Não consola, mas existem sistemas muito piores. Entretanto concordo com o ministro da justiça, se fosse possível escolher entre a morte e ter que cumprir 30 anos de prisão (pena máxima que pode cumprir um sentenciado no país desde o Código Penal republicano de 1890) eu asseguro que grande parte desses sentenciados escolheria a via rápida de por fim aos suplícios e ao sofrimento inerentes ao cárcere. O trágico é que somos quase 600 mil presos e presas hoje no Brasil (sem contarmos os adolescentes em conflito com a lei e os portadores de sofrimento mental encarcerados) e a discussão caminha na contramão: o nível de estupidez nos discursos sobre o tema, tanto no Congresso Nacional, quanto fora dele são de irritar o paciente Jó.

CDH: Existem alguns exemplos positivos que podem ser adotados em outros lugares do país?
P. V: Não vejo nenhum exemplo positivo. Muito se fala das Associações de Proteção e Amparo aos Condenados (APAC’s), mas não deixa de ser prisão. As ouvidorias estaduais são meros apêndices dos governos e não têm qualquer interesse em apurar as torturas e os desmandos, apenas em defender os próprios cargos. Os Conselhos da Comunidade talvez fossem uma alternativa em uma verdadeira individualização da pena, mas encontram várias restrições nas próprias comunidades. Penso que a organização de núcleos de amigos e familiares de pessoas em privação de liberdade em cada localidade que conte com uma cadeia pública, um presídio, uma penitenciária é uma tentativa de solução. Organizar a massa de parentes e amigos de presos é o que venho tentando contribuir nos últimos 10 anos, mas é um trabalho muito difícil e penoso. Como disse: já ultrapassamos um ponto de não retorno. Penso que enquanto não tivermos um direito penal mínimo, utilizado como última ratio, o que não é nenhuma novidade, Cesare de Bonesana já pregava isso na segunda metade do século XVIII, não teremos nenhuma possibilidade de avanço. É primordial que a sociedade entenda que um dia os presos sairão. Alguns, pelo menos, sairão. Vão cobrar o tempo perdido de quem? Como dizia Rogério Sganzerla, o genial cineasta catarinense, em seu O bandido da luz vermelha: “E quem estiver de sapatos não sobra“. As perspectivas são sombrias. Vivemos tempos muito sombrios. A única certeza que tenho é a de que não podemos desistir de resistir. Daqui a 200, 300 anos, se ainda houver este planeta, algum antropólogo vai se debruçar sobre esse período e espantado vai dizer: eles prendiam gente como se prende animais. Tem gente que acha isso natural.

Professor Virgílio de Mattos, graduado em Direito (1985), Especialista em Ciências Penais (1998), e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (2000), Doutor em Evolução do Direitos e Novos Direitos pela Università degli di Lecce – IT (2006). Da LEAP do Brasil, do Fórum Mineiro de Saúde Mental. Membro da Comissão Nacional de Fomento à Participação Social na Execução Penal do Ministério da Justiça. Advogado Criminalista.