domingo, 26 de abril de 2020

Lembranças do vento - Hilton Görresen

Dizem que uma pessoa não se banha duas vezes nas mesmas águas de um rio. A mudança é constante. A escola de minha cidade não é o mesmo colégio Stela Matutina, em que outrora voejavam os hábitos negros das freiras, santas freiras que educaram tantas gerações de moleques. Os modernos cinemas de shoppings não são o velho e gostoso Cine Marajá, no qual assistíamos os lançamentos de Hollywood com uns três anos de atraso.
A única coisa que para mim permanece constante é o vento. Estranho, não? Por que o vento? Porque o vento me provoca sensações associadas a momentos de bem-estar. Traz do passado momentos de intensa liberdade. 
Quando menino, adorava correr contra o refrescante vento de outono, sentindo-o no rosto e nos braços. A exemplo do personagem de Titanic – e sem o saber – podia sentir-me o dono do mundo. Sempre que venta agradavelmente, vento de bom tempo, sinto perpassar essa sensação de liberdade. Com minha ignorância meteorológica, não sei precisar se esse vento vem do sul, do norte ou nordeste. Basta que me enfune o rosto e o peito, como velas soltas.
É uma forma de captar a realidade, sentir a vida no corpo. Constatar que a velha natureza é uma fonte de prazer, dos poucos que nos são consentidos hoje gratuitamente. Sim, por mais que eu tenha mudado, o vento permanece o mesmo de minha infância.
Talvez eu não seja o único. Vejam o Caetano Veloso: “caminhando contra o vento, sem lenço, sem documento” ...e aquela outra música: ...” depois andar de encontro ao vento...”. É como romper barreiras, vencer distâncias, seja no volante de um carro, de uma lancha, seja numa caminhada firme. 
Além disso, é poético formar frases com a figura do vento: “...E o vento levou”. “O tempo e o vento”. “O vento será tua herança” (foi a minha herança também, e, pelo jeito, vai ser a dos meus filhos). 
Hoje, nessa situação de isolamento, não é fácil estar enclausurado em casa enquanto lá fora, num dia azul e verde, a brisa balança suave os ramos das árvores.