– Você ainda me ama?
A pergunta o sobressaltou, como se uma pedra tivesse atingido a testa em cheio.
O que dizer? Balançou as mãos, desconexas, desamparadas. Carregara por aquela mulher um caminhão de pedras. Amara-a, sim. Destemidamente. Afoitamente. Agora...
Parou, escutando, durante longos segundos, bater o coração. Deu alguns passos no quarto semiescuro, escancarou a janela, empurrou a persiana, e a luz quase o cegou.
Amara-a perdidamente. Conheceram a felicidade. Até que... Maldito vício, maldita droga. Começara com cerveja, cigarros, uísque, maconha, depois cocaína, crack...
– Você é culpado por tudo isso.
Talvez fosse. Abandonara-a e levara os dois filhos, que não podiam crescer no meio do lamaçal.
– Por que eles não vêm me ver?
Um estava nos Estados Unidos. Outro, no México.
– Esqueceu que eles estão fora do país?
Havia esquecido.
Prosa afiada. Discussões. Ameaças. Unhas e garras. Vamos respeitar, pelo menos, as crianças, ele disse. Que se danem, nem sei por que os pari. Aquilo foi a gota d’água. Deixou a casa. Sei me virar sozinha, você não passa de um estorvo, ela gritou aos berros. Todo mês, depositava-lhe boa soma de dinheiro, que era consumida em pó branco. Ela buscava o clímax sobre clímax.
Cada qual deve cavar o poço que deseja, até ser soterrado pela própria terra.
– Quase acabamos um com outro – ouviu-a dizer.
Está deitada na cama. Uma camisola amarela que parece puxada de seus ombros e enroscada no antebraço, as pernas abertas, com varizes, os braços jogados para o lado. O quarto está repleto de ecos, gritos, súplicas, promessas brutais.
A droga é um corredor rápido para o matadouro, ele pensa. Podia ter sido diferente? Amara-a tanto. Até que o veneno os separou. Viagem sem volta.
– Feche essa maldita janela – ordenou. – Essa luz me ofusca, minha cabeça vai estourar!
A lâmpada sobre a mesa da cabeceira iluminava o perfil decadente, envolvendo-o num brilho impiedoso. Faces encovadas. As linhas em volta da boca, a pele empapuçada e descorada sob os olhos. Fazia dois anos que não a via. Em dois anos a cocaína e a bebida a fizeram mais velha vinte anos. Mudaram não só o corpo, mas o caráter, transformaram-na numa pessoa desconhecida. A beleza se transformara numa figura reduzida à indiferença de uma idiota. Fala desconexa, esquecia tudo, não se comprometia com coisa alguma. Magoava quem fosse com grosseria. O nariz parecia a duas grutas vermelhas, quase em sangue. Os cabelos, tão bem cuidados antes, estavam gordurosos e despenteados, lambuzados de vários tons de tinta, aplicada de qualquer jeito. Havia lixo jogado pelo assoalho e uma ponta de cigarro havia queimado o edredom e chamuscado o lençol encardido. Os travesseiros – sujos de batom e suor, deixavam à mostra manchas pardas de café. As veias dos braços salpicadas de manchas roxas das agulhadas.
O que fora – uma moça cheia de vida e sonhos, lépida. O que se apresentava – pó e sombra. Em dois anos a droga a fizera mais velha vinte anos.
– Você precisa de cuidados médicos. Não pode ficar sozinha. Isso parece um chiqueiro. Vamos, levante-se, tome banho. Vou levá-la.
Com um movimento súbito, voz trêmula de raiva, ela começou a gritar: Assassino! Monstro! Animal! Como todo mundo, você quer me destruir. Não vou pra lugar algum. Se você não tivesse roubado meus filhos, eu não estaria doente. Fez o que fez com o fim exclusivo de me fazer mal. Você é um sádico. Não vou a lugar algum.
As lágrimas saltaram dos olhos. A tinta preta das pestanas se dissolveu e escorreu em longos fios fuliginosos na pele pálida.
Era triste, doído, mas tinha que ter coragem. Resoluto, foi à porta e pediu que os dois enfermeiros fortes, que esperavam há tempo, entrassem. Houve protestos, xingamentos, um berreiro enorme. Foi amarrada, carregada como fardo vivo e despejada na ambulância. Na frente da casa, vizinhos e curiosos espiavam.
– Não houve nada. Voltem pra suas casas – ordenou.
O sol caía alaranjado sobre as ruas e as casas. Ouvia-a dizer: quase acabamos um com outro.
Que rumos estranhos, a vida...