De manhã, impecável, Alfredo se pôs diante do espelho. Ainda um belo homem, embora grisalho: elegante, sem barriga, cinquentão.
O estilo é tudo, disse, sentando-se para o café. Ah, que saudades dos tempos que lia os jornais e revistas impressos... Jornais e revistas haviam desaparecido. Agora, navegava na internet, no Instagram, no Facebook, nos blogs, nos sites, nos e-mails. Não era a mesma coisa.
Entre tantos recados, um e-mail o atiçou: “Meu bom amigo Alfredo, com certeza, você não se lembra de mim. Procure na memória: Letícia. Estou na cidade. gostaria de encontrá-lo. Meu endereço...”
Letícia? Letícia? De repente, entre brumas, saltitou a imagem dela, e o coração começou a bater com força. Entre tantas mulheres, lembrava-se, fora ela quem amara profundamente. Mulher de cabelos negros, olhos verdes, encantadora. Era casada com um fazendeiro de soja. Levara-a de repente para a fazenda e lá a encerrara, enciumado.
Agora, aquele e-mail. Respondeu que iria vê-la à noite. O café amargou na garganta, o dia se alongou cheio de banalidades. Parece que o fogo do amor contido explodia por todos os poros. Por sobre grossas camadas de cinzas, a brasa se avivava e acendia o fogaréu.
– Jantaremos juntos esta noite, com bom vinho.
De noite, polidamente elegante, apertou a campainha do apartamento. O coração batia aos trancos, como num primeiro encontro. A porta se abriu. Uma velha senhora de cabelos brancos, gorda, lhe estendeu as mãos.
– Você continua o mesmo. O tempo não fez estrago.
– É você, Letícia?
Abraçou-a. Estava envelhecida. Perdera o corpo de princesa e os olhos vivazes.
– Ah, meu bom amigo, a vida não foi fácil, enfiada naquele fim de mundo. Sente-se, vamos conversar.
O desgosto a consumira. O ciúme doentio do marido a deixara acabada. Anos sem botar os pés fora da fazenda. Por todos os lados, só via campos de soja. Vivera anos encarcerada naquele mundo que não lhe pertencia. Vivera de boas lembranças, do tempo que sentira o verdadeiro amor brotar em sua vida. Lastimava-se por ter submetido à vontade do marido. Ah, como é odioso, cruel, aguentar alguém sem amar. Certa vez, fugira de casa, num ônibus de linha, só com a roupa do corpo, mas o marido a achara numa pensão de uma cidade vizinha. Deus do céu! A vergonha de voltar para o lar odioso e aguentar a falação de gente que não a compreendia. Enfim, tudo havia terminado. O marido ciumento morrera de repente, um infarto fulminante, e ela e a filha estavam de volta ao mundo dos vivos.
– Clarice, venha cá – chamou.
Entrou na sala uma jovem graciosa, com seus 18 anos. Tinha a cabeleira negra e os olhos verdes como os da mãe quando jovem. O coração de Alfredo começou a dar murros no peito. Tinha vontade de abraçá-la, beijá-la, apertá-la. Era a cópia da mãe.
O jantar transcorreu com frases banais, lembranças forte mas comedidas. Diante da beleza de Clarice, a mãe parecia uma fotografia esmaecida.
Despediram-se. Alfredo voltou para casa um tanto abatido. Sentia-se desconfortável: a paixão pela moça o devorava. Custou a dormir. Sonhou coisas absurdas. A mãe envelhecida, sem atrativos. A filha, ah a filha! Tão bela, tão princesa, tão viva e graciosa! Estava perdidamente apaixonado pela filha.
De manhã, estava um trapo. Mirando-se no espelho, viu-se envelhecido. Sentou-se para o café e, sem se lembrar dos velhos jornais e revistas, ficou futricando sem interesse na internet. Lá estava, entretanto, outro e-mail de Letícia:
“Querido, foi tão bom revê-lo. Fiquei contente e, ao mesmo tempo, desolada. Depois que você saiu, chorei tanto. Não tive coragem de contar-lhe o segredo que há entre nós. Clarice é sua filha!”
Alfredo sentiu o sangue gelar e um gosto de pregos enferrujados travou sua língua.