domingo, 5 de abril de 2020

Para além dos campos de soja de David Gonçalves

– O menino não se queixa mais – disse a mulher, embalando o filho no colo.
Olhei para a mulher, olhei para a chuva sem tréguas, olhei para o campo amarelo de soja que se estendia a nossa frente. Há três dias a gente estava ali, naquele armazém perdido no meio do nada. O caminhão com lona cobrindo a carroceria havia quebrado e três homens, vindos da cidade distante, tentavam consertá-lo, debaixo de um abrigo improvisado. O menino voltou a chorar.
– Coitadinho... Miguelito, pare de chorar. Pegou uma febre e não quer mamar.
Dava-lhe os peitos murchos. O menino tinha os olhos secos também. Pele seca e transparente, cor de toco de vela.
– Pra onde você vai? – perguntei, condoído.
Sem expressão, olhos cravados na chuva, murmurou:
– Vou pra casa da mãe. Sabe, o casamento não deu certo. Foi um engano. Não adianta insistir. Sabe, leite derramado.
Eu nada disse. Voltei a olhar a chuva e o campo de soja. A gente esperava que os mecânicos pusessem o motor a funcionar.
No meio de sacos de mantimentos, caçarolas, enxadas, foices, todos tentavam se ajeitar, aborrecidos, uns fumando, outros quietos, outros tagarelando, inventando coisas para passar o tempo. Então, dormi. Acho que cochilei. Fui acordado com um ruído de motor. Todos se levantaram, apressados.
– Podem subir – disse o motorista, limpando as mãos sujas de graxa. – Agora, tá novinho em folha.
Vazando as nuvens, o sol apareceu. De repente, uma vasta faixa azul do céu se mostrou. Bichos e pássaros saíram de suas tocas e ninhos. Tudo voltava a ter vida.
Homens e mulheres se agitaram, erguiam os pacotes, sacos e panelas. Haviam colocado correntes nos pneus do caminhão e, assim, poderia vencer o barro vermelho e mole.
– Moço, me ajude a subir – disse a mulher. – O menino não chora mais.
Olhei o menino. Estava inerte, sem expressão, pálido. Ela havia fechado os olhos dele.
– Se não fosse esse aguaceiro, meu pobre anjinho ainda estaria vivo – voltou a dizer.
Todos já estavam na carroceria, sentados nos bancos rústicos de madeira improvisados.
– Espero que ninguém fique sabendo do que aconteceu. Há motoristas que não gostam de carregar mortos. Mais um anjinho assim – murmurou ela.
O caminhão partiu. Depois de três dias, os peões e camponeses se mostravam alegres, tagarelavam, cantavam, diziam causos. Campos de soja, campos de café e pastarias se sucediam. Mas, depois de meia hora, todos se calaram e o caminhão dançava na terra encharcada.
– Pra onde você vai? – perguntei.
– Vou pra Londrina, na casa de minha mãe. Não tenho outro lugar. Sabe, o casamento... Pra lá é que eu vou.
Me calei. Olhando o menino morto enrolado nos trapos, fiquei remoendo as contradições de Deus.
– Precisa de algum dinheiro?
– Uma ajuda é sempre bom – disse ela.
Saquei algumas notas de minhas pequenas economias e lhe entreguei.
– Deus há-de. 
O caminhão dançava e gemia numa subida, espirrando barro vermelho.