sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Cemitério na praça (conto de David Gonçalves)

Na praça de minha cidade, como todas, há gatos e lagartos. Mas três situações são evidentes: os evangélicos rezando e gritando no coreto, os aposentados jogando dominó e nós, os bêbados. 

De nossa gente, eu quero falar. A polícia ronda, dá umas cacetadas e pontapés, grita, mas a gente não liga. Ela não quer essa gente podre detrás das grades. Muito custo, raiva e trabalho. Assim, vamos ficando por aqui. Os pés-inchados. Os fígados-urubus. Os pernas-estuporadas. Os perdidos-na-curva. Os filhos-da-mãe. Os rasga-congas. Os barrigas-inchadas. Os caras-vermelhos. Os sem-raça, sem-teto, sem-família. Os canelas-roxas. Os chifrudos. Os bafos-de-onça. Os gambás-da-praça. Os pés-de-elefantes.

Essa gente maldosa não sabe que a gente também é gente e já teve uma porção da felicidade. Pois eu tive mulher e filhos. Acho que tenho ainda. Tive emprego. Foi escolha errada, disse o Barriga. Ela não te amava. Queria o seu salário. Pode ser, digo eu. Incrível, cada um tem a sua história. Mulher, filhos, amigos... Ninguém matou a ingrata. Somos inocentes. Temperamos nossas amarguras com a Jamel e todas as marcas. Mas se vê a decadência quando o companheiro aparece com a garrafinha de plástico ou álcool de posto de gasolina.

Sou daqui mesmo, Quadrínculo. Nunca pisei outro chão. Outros – de outras paragens. Curva-Torta, de Londrina. Bafo, de Mandaguari. Pé-Rosado, de Apucarana. Piolho, de Arapongas. Porco-Rajado, de Maringá. Gasolina, de Cianorte. Assim vai.

A gente bebe porque quer. Ninguém mandou a gente beber. Bebe na saúde. Bebe na tristeza. Bebe na doença. Bebe quando faz sol. Bebe quando chove. Nem o padre, nem o bispo, nem o prefeito, nem a puta que o pariu mandou a gente beber. Pobres de nós, dizem. Pois eu digo: ricos de nós.

Os velhinhos jogam dominó porque já não tem esperança. Os evangélicos rezam e berram e cantam porque não sabem pra onde vão. Nós, os podres, não temos nada. Os restolhos. Os bagaços. Nada é a nossa condição. Aqui, não há esperança. Bebemos e deliramos. Isso é tudo.

Cada novo membro que chega tem que pagar um litro de Jamel. Ingresso pra entrar no seleto grupo. Senão é expulso, é tratado como cão vadio e sarnento. Mão-de-vaca, jamais!
Uma dúzia de bêbados fedorentos. Podres. Felizes e infelizes. Todo mundo pede esmola. Pra comprar a cachaça. Uns dão por piedade, outros pra se livrarem do vivente fedorento. Mas a gente não faz mal a ninguém. Deus também bebia. Cristo gostava de vinho. Noé, de cachaça. Salomão, nem se fala.

Aí, chegou o sujeito. Se dispôs a pagar. Pagou. Bebemos. Só elogios. A gente precisava de gente assim. Mão aberta. boa prosa. Não pagou uma garrafa, não. Um garrafão. Pinga de alambique. Muito mais forte. Eu não bebi. Sou desconfiado até com a sombra. O Diabo faz coisas. Secaram o garrafão. Aquilo parecia um aperitivo. Só elogios. Todos estavam prosa. Menos eu. Fiquei no meu canto, bebendo do meu litrinho. Moscas zuniam, zzzzz pra cá, zzzzz pra lá, e pousavam nos pés de elefantes. Então, todos foram se deitando, mole-mole, iguais vacas no anoitecer. Achei muito estranho. Eu bebia, no meu canto, da minha cachacinha, aos pouquinhos. O cara novato me disse: prove um pouco, ainda tem um restinho no fundo do garrafão. Ria. Riso torto, espichado. Juro que vi os chifres na testa enrugada de boi velho. Sai, demônio – gritei. Eu tinha um crucifixo no peito, que ganhei de minha mãe, e mostrei pra ele. O riso dele foi murchando, murchando e sumiu. O cão. O limpa-terrenos. O limpa-raça. Que veneno havia naquele garrafão de cachaça? Por quê? A gente só bebia. Não fazia parte do Mal. Seu Cão dos infernos! De repente, ele se rebentou numa gargalhada e sumiu.

Na praça, pode conferir nos jornais, nove bêbados mortos, com as barrigas estufadas, as caras azuláceas. Na praça, hoje, só eu, os velhinhos jogando dominó e os evangélicos rezando.