sexta-feira, 8 de novembro de 2019

"Cansei de tentar ser linda"

Estou com 46 anos e olhando, agora, para trás.

Quando casei com 23 anos, minha mãe me deu uma caixa de cosméticos da melhor qualidade e me disse: “quero que você me prometa que sempre que um desses acabar, você vai repor. Não quero que você se esqueça de cuidar de si como eu me esqueci de mim”.

Minha mãe é dona de casa e teve a vida dedicada a cuidar da gente e a manter tudo limpo. Disse ela que não tinha tempo de ficar passando creminhos, pintando cabelo e se maquiando.

Comecei a dar aulas com 21 anos. Até então, eu roía unhas. Parei com o vício de tanta vergonha. As professoras tinham as unhas grandes e coloridas. Passei a fazer unha toda santa semana.

No ambiente de trabalho, dentro de uma escola, sentia que não podia repetir roupa e que a minha aparência era essencial para que as pessoas me dessem respeito. Salto alto, calças moderninhas, blusinhas fofas, vestidos estilosos… Grande parte do meu salário era gasto renovando meu armário.

Daí veio a moda de cabelos muito lisos com a tal da escova progressiva. Tenho uma juba que está ficando branca. Eles não são lisos como os das japonesas nem crespos como das mulheres negras. Tem definição? Há ordem? Nananinha. Eles têm vontade própria e são imprevisíveis. Quando viajo, levo escova, chapinha e prendedor de cabelo caso não tenha tempo de alinhá-los. Se não uso nada disso, dado a natureza desses fios, a impressão que dá é que eles não são passíveis de compreensão dada a (aparente) falta de personalidade, típica daqueles que não se encaixam em lugar algum.

Quanto à depilação, passei por fases. Fase da gilete, fase do depilador elétrico, fase de pedir para uma pessoa tirar tudo. Fase do desespero. Em todas elas, sofri de dor e pelos encravados.

Minha pele tem sardas. Minha mãe é toda pintadinha e eu me pareço com ela. Fiz tratamento para clarear essas manchas e não tenho mais noção de quantas vezes fui à dermatologista e das variedades de cremes que já passei para deixar o coro uniforme. Tudo em vão.

Para esconder minhas olheiras, comprei muita maquiagem para os olhos. E para ficar “linda” no verão, gastei uma grana numa base 24 horas ótima que de tão boa só sai com bombril e veja multi uso. Perdi as contas de quantas blusas manchei por conta do reboco que passei nessa fuça todo santo dia há mais de vinte anos.

Se eu colocar na ponta do lápis tudo o que gastei em tempo e em dinheiro para me sentir bonita, acho que vou ficar mais noites sem dormir conectando tudo isso com esse maldito sistema que faz da gente uma bela marionete. E, a despeito de “tanto cuidado”, está tudo, digamos, piorando. Preciso ficar cada vez mais tempo no cabeleireiro, na manicure, escolhendo cremes, hidratando cotovelo, joelho, calcanhar para que as pessoas sintam que eu estou bem.

E segue tudo caindo e murchando.

Há dois meses, dei uma chutada de leve no balde. Parei de usar base. Assumi minha pele manchada e fui sem maquiagem até, pasmem, dar palestras. O rosto parecia o de um urso panda dado o estrago que as noites mal dormidas têm feito em volta dos meus olhos. Mas quis experimentar esse tipo de liberdade e, venho avisar, gostei.

Gostei muito.

Ganhei uns minutos preciosos que gastava passando primer, iluminador, corretivo, delineador… fiquei só com o protetor e um lápis básico.

Senti o prazer de ter mais tempo e resolvi fazer o mesmo com as unhas. Elas estão limpinhas, cortadinhas, mas as cutículas estão aqui e está tudo sem cor, ou melhor, com a cor natural que elas têm. Em um mês, economizei, só com as unhas, mais de cem reais e tive quatro horas a mais, pelo menos, para ler.

Detalhe, o tempo que eu perdia não era só para me deslocar e da hora em si que o trabalho estava sendo feito. Eu perdia tempo me olhando para ver quanto tempo aguentava. Isso também é um tipo de subtração. Se juntar todos os minutos, acho que perdi semanas nisso: “Tenho que fazer a unha”. “Terça tem promoção na depiladora”. “Acho que o cabelo aguenta mais um dia sem lavar”… coisinhas assim que pensava enquanto podia estar ocupando a cabeça com literatura, arte e nada, por exemplo.

Como a revolução interna nunca acontece pela metade, joguei todos meus sutiãs de bojo no lixo. Nunca me entendi com aqueles arames e acho que pelo fato de eu ter as costas largas e os peitos murchos, foi difícil arrumar sutiã que me deixasse confortável nessa vida. Várias vezes ficava me ajeitando de forma disfarçada porque algo ali estava fora de lugar. Em algumas situações, até mesmo dando aula, o sutiã abriu de tanto que tentava me compor. No lugar desse assessório do capeta, comprei aquilo que usamos quando vamos à academia (coisa que não faço também). Algo bem confortável que me permita andar, dar aulas e pedalar com as costas e as muxibas em paz.

Daí, comecei a pensar nos homens e percebi que vários amigos estão na minha frente em tempo livre e em dinheiro só porque são homens. Não somente porque ganham mais, mas porque gastam menos também já que para serem considerados bem sucedidos, basta cuidar do conteúdo e tomar banho. Colocar a mesma calça jeans e um tênis confortável com uma camisa básica branca não é problema algum para eles. Serão vistos com respeito e ninguém há de julgá-los porque estão somente limpos.

Não é fácil de verdade, gente. É muito difícil – em vários níveis – ser mulher. E olha que estou falando de um referencial super privilegiado.

Estou me sentindo mais bonita depois que parei de passar um monte de coisa para ficar me colorindo? De forma alguma. São anos lendo revistas femininas em que retratam as mulheres bem sucedidas com a pele nova, lisa, maquiada e os cabelos devidamente domados. São mais de vinte anos trabalhando com pessoas elogiando minha aparência. Semana retrasada, duas pessoas me perguntaram se eu estava cansada. Senti-me horrível, mas entendi que preciso descansar e não me maquiar.

Passei a ir para a cama com livros novamente. Hábito que havia deixado de lado dado a demanda do celular. Não raro, por conta do Brasil, perdia o sono. Os cabelos seguem discutindo comigo, rebeldes que são, mas parei de querer alisá-los.

Diriam muitos de vocês (e até a minha mãe) que estou “me largando”, deixando de cuidar de mim. Tenho pedalado muito, namorado bastante, comido super bem, estou lendo como nunca, aprendendo libras e voltei até a escrever. Tive ideia para um novo livro e estou trabalhando nisso muito animada. Também andei dando umas aulas diferentes e resolvi fazer um filme para mostrar para vocês como a experiência foi bacana. Ainda assim, para essa sociedade que nos impõe modelo de beleza, tenho a aparência de quem não está se cuidando.

Sigo pintando meus cabelos. Queria me livrar também desse cativeiro. Porém, miro na Meryl Streep no O diabo veste Prada e acerto na bruxa do setenta e um. Ainda há uma infinidade de coisas a serem trabalhadas. Há, por exemplo, uma voz aqui dentro me dizendo que preciso escolher, no futuro, ser a Hebe Camargo ou a Dona Benta.

Há, por sorte também, outras vozes.

Sei que a vida não é assim e que existem outros caminhos.

O meu caminho.

Eu disse que uma revolução interna não acontece pela metade mas, por vezes, preciso admitir, não se dá também por inteira. Temos que ter paciência com o nosso pretérito imperfeito.

Pode ser que um dia acorde com todo o tempo do mundo e resolva me enfeitar para ir à padaria. Pessoas fortes e guerreiras têm muitas recaídas e inseguranças.

Mas, se me virem por aí cheia de sardas, cutículas, olheiras e de tênis, percebam que há um fenômeno acontecendo.

É como eu pedisse a Deus para me fazer voar e ele me transformasse em um urubu.

Não estarei me sentindo mais bela mas, certamente, experimentando um tipo de liberdade. 
Fonte: https://elikatakimoto.com