sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Gregorão e a Chiquita de estimação de David Gonçalves

Cachorro mordido de cobra vê fantasma em qualquer linguiça. Você ri bestamente. Mas o assunto é sério. O riso é uma das formas do medo. Pois não é, então? Acontece cada coisa na vida da gente...

Gregorão puxou de um cigarro barato e acendeu, baforando longamente. Os taxistas esperavam. Pelo jeito, lá vinha história. Rodoviária deserta, só gatos pingados, gentinha pobre que se aboletava, dormindo, sobre os bancos de madeira. Os taxistas, sonolentos e cansados, aguardavam pacientemente o próximo ônibus. Se tivessem sorte, alguns passageiros, os que tinham mais dinheiro, pegariam os táxis. Mas se os passageiros fossem pobres, desses ônibus que vêm do interior, o melhor era voltar para casa e tentar dormir. Pobre só anda de táxi em dia de pagamento ou quando a mulher está para ganhar bebê.
– Desse mato não sai coelho! Esse cara só tem tamanho... Esse cigarro é porcaria: a fumaça fede.
Gregorão era um baita homem. Quase dois metros e dez. Corpulento, braçudo, desses italianos tratados a polenta suculenta. O danado era bom de briga. Dois assaltantes quiseram levar a grana e o carro de Gregorão numa corrida, no Vila Nova, bairro deserto, e se deram mal. Gregorão, mesmo com o revólver na nuca, acabou com a fama dos safados. Cada munhecaço era um tombo.
– Comigo é assim: escreveu, não leu, o pau comeu! – dizia, em voz alta. – Eu não levo desaforos pra casa.
Mas o pessoal, naquela madrugada, estava sedento de conversa. Qualquer historiazinha. Só para matar o tempo. Vida de taxista, quando faz ponto à noite, se assemelha com velório. A madrugada se espicha, se arrasta, as horas desandam. Até o defunto se incomoda.
Gregorão sentiu que todos aguardavam sua fala. Mirou a rodoviária vazia, a névoa refletindo nas lâmpadas, e pensou: “Hoje vai ser dia quente pra burro. Essa névoa não me engana”. Em seguida, principiou o relato, um pouco assustado:
– Eu já fui mordido de cobra. Vocês estavam falando das cobras de Mato Grosso... Eu já estive à beira da morte. Cascavel, um guizo de quinze anos. A gente descobre a idade da bruta pelo guizo, assim, como se diz, pelos anéis da ponta do rabo. Quanto mais anéis, mais velha é. Quando a bicha fica brava, faz barulhão no guizo. Quase morri. Vivia, então, em Quadrínculo, no interior. Num dia de chuva, roçando o pastinho dos fundos do sítio, zás!, a bitela me pegou. Um bote perfeito! Não fosse um compadre, que tinha um jipinho velho, não estava aqui hoje. Cascavel é o diabo!
Baforou longamente o cigarro barato. O cheiro estonteante empestou o ar morno da madrugada. Uma prostituta passou pelos taxistas. (continua amanhã...)