Moro aqui, lonjão, sem vizinhos, oco do mundo. O vento faz a curva e volta. Tem vez que ele fica escondido nas grutas e socavões. Da varanda, o mundo, mundinho, mundão se revela.
A cada quatro anos, esta casa esquecida é lembrada. Saqueadores do povo sentam nesta varanda e soltam o canto da sereia. Prefeito, vereador, deputado, cabos eleitorais. Eu escuto. Vão salvar a Nação, cuidar dos pobres, colocar os corruptos na cadeia. Pobre só come carne fresca quando morde a língua, eu penso. Ah, tantas coisas eles dizem. Eu escuto. Elogios pra eles, maldições pros outros. Sirvo café, leite, biscoitos, cachaça. Depois, eles vão embora. Ai, pobre de mim.
Nada sei. Sou bicho da terra. Minha família – minha mulher e três filhos já crescidos – também. Os pequenos estão sujeitos à lei. E os outros, os grandes, a tecem e nos tiram o couro.
Você é bobo, mocorongo, diz minha mulher, tão magra e enrugada, castigada pelo sol. Trata essa gente a pão-de-ló. Enche a burra deles com abóboras, pepinos e cachaça. Essa gente de fala mansa quer tirar o nosso couro. Eu escuto. Orelhas grandes. Ela fala, fala, fala.
Fico ruminando. Não é do meu feitio expulsar as visitas desta varanda. Finjo que nada sei. Sou ignorante. Bicho da terra. O vento vai, vem e volta. Uns ficam escondidos nas grutas e socavões.
Vem o padre, vêm os pastores. Deus não é o mesmo. Querem meu corpo, minha alma, e pregam, e se entusiasmam, e crucificam e salvam Cristo. Sirvo-lhes boa comida, boa bebida, e os presenteio com abóboras, chuchus, figos, uva, melancias, bananas, jabuticaba... Empanturram-se. Retornam contentes. Salvaram-me.
Vêm os parentes. Conversam, me abraçam, me elogiam, e contam histórias. Ofereço mesa farta. Sou um cara rico, dizem. Muito rico, voltam a dizer. Tem sorte. Em seguida, me pedem dinheiro. Se dou, perco. Se nego, maldizem por aí. Oferto, então, abóboras, chuchus e outras coisas. Isso é pra porco, dizem. Chateados, mas com a pança cheia, vão-se embora.
Vêm os homens de negócios. Vigaristas. Fala mansa e pegajosa. Contos de vigário. Finjo que aceito, depois rodopio, pulo fora. Ficam sondando quanto possuo, aves de rapina, olhos vivos e narigões. Concordo, finjo, dou risadas. Sou besta? Desanimados, vão-se embora.
Vêm os mendigos, medidores de mundo, andarilhos desapressados. Mortos de fome. O estômago pregado às costas, barbudos, piolhos se mexendo no calor do sol. Sirvo-lhes mesa farta. Comem, comem, até esticar o couro da barriga. Os doidos falam coisas do arco da velha. Uns, só comem, engolem os grãos de cereais sem mastigar, voluptuosos. Bocas desdentadas. Depois eles se deitam à sombra das mangueiras e dormem. Quase noite, vão-se. Fico pensando: será que um deles não é nosso Senhor vestido de mendigo?
Minha mulher diz que sou bobo. Pode ser. O que sou mesmo é bicho da terra. Sirvo ao mundo de bom grado. A mim, a terra. Não é mister ter opinião. O que sei? Emprenhar a terra, torná-la fecunda, barriguda. Cavar, lavrar e semear. Entendo das quatro estações. Sei quando semear o trigo, a aveia, podar e enxertar a vinha, segar, ceifar, bater os grãos, pisar a uva, fazer o vinho, triturar o trigo e fazer o pão, conversar com os animais, a vaquinha Salomé, o Sansão, meu pangaré; caçar colmeias, tratá-las, protegê-las, colher o mel. Cortar madeira sem acabar com a floresta, colher uma e plantar duas. Proteger as minas d´água, os riachinhos, os riachões, lagoinhas e lagoões. Forjar o ferro, cinzelar, carpintejar, abrir canais e estradas sem espantar a saparia. Plantar flores e jardins pra deixar o mundão de Deus mais bonito. Louvar ao Senhor em silêncio. Sei nenhuma oração. Vou dizendo as palavras e o vento vai espalhando. Não sou guardador de rebanhos. Sou ovelha.
Desta varanda, onde se fartam os homens e depois se vão, sou como aquela aranha tecendo a teia da existência. Que me dera que eu fosse o pó da estrada. Os pés dos pobres, nas quatro estações, plac-plac, me pisando. Ou um daqueles mendigos que se fartam por aqui vestido de nosso Senhor, o fabricante do mundo imenso, só pra conhecer melhor os homens...
Bicho da terra, minhocão, que só entende das quatro estações.