Ele caminha na tarde parda. Parece exausto. O vento sopra fortemente. Nas varandas a roupa lavada volta e meia se enrola no varal. Uma janela não para de bater. Um relâmpago brilha ao longe, na serra. Lâmpadas nos postes se acendem como se fosse noite. O vento dá lufadas fortes, as nuvens pesadas estão próximas. Vai chover. Uma nuvem de poeira envolve e cobre muros, carros, janelas, terraços, bolas e boias de plástico; arrasta tamancos, sacolas, garrafas, bonés, chapéus, camisas, toalhas de banho, suspende as saias das mulheres, expõe as pernas magras, torneadas, envelhecidas. Mulheres, homens, crianças, cachorros, insetos se escondem. Os primeiros pingos batem em diagonal, fortes, gelados. Ele caminha, enraivecido.
Genro idiota, resmunga. Ouvia-o dizendo: está uma bagunça, um lixo, porque sempre quis assim. Quando começou a beber? Aos vinte anos, responde. Só cerveja. Quantas por semana? Doze latinhas. Bebeu até quando? Cerveja? Até aos setenta. Sabe quantas latinhas você bebeu? Dá de ombros. Pelo menos, pensa, o que tomei ninguém me roubará. Intimamente, ri: mijei no mundo. O genro puxa a calculadora de bolso, tac-tac-tac-tac, e faz as contas. Você bebeu 28.800 latinhas, sem contar os anos que você bebeu mais. Se tivesse economizado... Teve vontade de dizer: vá à merda, ao diabo que te carregue. Bebi e beberia muito mais. O genro insiste: podia ter reformado esta casa caindo aos pedaços. Sente a indignação dopar-lhe o cérebro: ah, então é isso, você está de olhos na herança. Já devia ter desconfiado. Com esse olhar de gavião afoito, eu devia ter manjado. Mas nada digo. Há um breve silêncio. Inóspito, por sinal. Quando começou na cachaça? Depois dos setenta, desalentado, responde. Quantos litros por semana? No começo, dois litros, mercedinhos antes do almoço e da janta. Nos últimos anos? Nada de mentiras. Eu vi a pilha de garrafas vazias lá no quartinho dos fundos. Magoado, como criança surpreendida numa falta, responde, incomodado: nos últimos cinco anos, quatro litros por semana. A danada vicia mesmo. A solidão é um convite pra encher a cara. O genro mexe na calculadora: tac-tac-tac. Depois diz: você está com 83 anos, não é? Sim, estou. Você bebeu 960 litros da maldita. Se tivesse economizado... O fígado deve estar preto. Tudo isso?! Não pode ser. Dá de ombros. E daí? Amigos que nunca bebiam já estavam apodrecidos no cemitério. Bebera a fortuna. Genro idiota: esperava que a deixasse pra ele gozá-la, passear no Caribe, beber vinho na Espanha... Se fodeu.
A chuva engrossa. Ele caminha, perdido, como se andasse em círculo. Raios iluminam a tarde feito noite.
Quero lhe contar uma coisa, diz o genro. Eu e sua filha estivemos conversando. Finge prestar atenção. A gente deve demolir esta casa caindo aos pedaços. Deu o que tinha que dar. A cidade cresceu. Este terreno vale uma fortuna. Demolir e construir um grande edifício de apartamentos. Você está sentado numa montanha de ouro. Olhe pela janela: há prédios brotando do chão por todos os lados. O construtor daria até quatro apartamentos. Um pro senhor, os três pros filhos. Seria bom pra todos. É para seu bem. Não está me ouvindo? Balança a cabeça afirmativamente. Aos diabos, que se dane o mundo, tem vontade de dizer mas se cala. Onde está o copo de cachaça? O mundo todo dá tijoladas em sua cabeça. O senhor prefere se embriagar 24 horas e morar nesta casa caindo aos pedaços, passando fome e frio. Abre a porta da geladeira: veja, não tem nada, só o litro de aguardente. Se deixar construir o prédio, poderá morar num apartamento bonito e quentinho. Aos diabos, sente o corpo tremer, a tosse sacudindo. Onde está o copo? Será que este bosta derramou na pia? A gente bota todos esses móveis encarquilhados no apartamento, diz o genro, guardando a calculadora no bolso. Fica tudo igual como está aqui: o sofá, a cristaleira, a mesa de nogueira, o baú, os pratos... este retrato dos teus pais na parede. Tudo igualzinho. Do jeito que você está bebendo e na sujeira os vizinhos vão denunciar a gente como abandono de idoso incapaz. Por favor, diga que sim. Me dá uma resposta. Posso tratar dos negócios. Pro seu bem, é claro. Aos diabos. Nada responde. Ansiava por um copo da branquinha. Tremia. Seu bafo é de gambá, rescende a álcool, diz o genro.
Velho que deixa o seu ninho logo morre. Será que o idiota não sabe isso? Será que ele o quer ver na horizontal?
Todo velho tem que ter o seu cantinho. Nem que seja caindo aos pedaços. Por que se mudar? Os velhos morrem porque já não são amados. Dizem que é a melhor idade. Dizem que é a segunda infância. Um rol de bobagens. Ninguém se alegra vendo os dias se findarem.
Está ensopado. Treme de frio. A chuva, enfim, parou, mas ele caminha desnorteado. Genro safado. Quando se vê refletido nas vitrines, não se reconhece. Parece um galo velho acabado, encharcado, implorando por amor.
Pai, vamos pra casa. Olha estranhamente a mulher que o puxa pelos braços. Por que está na chuva? Aos poucos, reconhece a filha e, sem dizer nada, é arrastado por ela.