sábado, 3 de agosto de 2019

Blecaute por Jura Arruda

Não sei quantos erros Modesto cometeu.

Seu rosto envelhecido traz muitas marcas, seu olhar pede compaixão. Uma das mãos segura o braço da outra numa tentativa ineficiente de conter a dor. Sua fala é entrecortada por suspiros, e os olhos, com frequência, aguam lágrimas que não se permitem cair e, por isso, inundam-me.

Chegou ontem na cidade onde moram a mãe e a irmã. Ele não as vê há anos e não sabe se será bem recebido.

O frio aumenta a dor.

Há desgaste nas cartilagens de Modesto, mas não há desgaste de sua esperança. A fala é pausada e suave, de quem aprendeu que não é preciso gritar para pedir socorro. Modesto pede socorro quando baixa o olhar, quando sorri, quando se move com dificuldade. Lemos as páginas iniciais de Blecaute, do Marcelo Rubens Paiva: três amigos que resolvem estudar espeleologia entram em uma caverna e, porque o rio enche, ficam presos por alguns dias. Quando saem, as pessoas estão petrificadas, há uma atmosfera de pós-apocalipse e eles entendem que são os únicos seres humanos que restaram.

O livro mexe com Modesto. Proponho falarmos sobre o que faríamos se pudéssemos recomeçar o mundo, ele fica pensativo, quase posso ver em sua mente uma sequência de imagens e possibilidades. Ele me olha e sorri, “Se a maré subir, cada um vai para um lado…”, é de solidão que Modesto parece ser feito. Aperta um dos braços com a mão e seus lábios se contorcem numa tentativa de conter a dor.

Na hora de ir embora, entrego o livro para ele, que me retribui com os olhos aguando gratidão. Queria ter feito mais, queria ser mais do que um cidadão que cumpre seus deveres sem saber direito para quê. O Estado anda matando-nos aos poucos, arrancando-nos a cartilagem que outrora nos permitia movimentos. Assistimos calados ao aumento de pessoas em situação de rua, às perdas do que há tão pouco conquistáramos.

Modesto vai passar frio antes de reencontrar a família, vai sentir dor na madrugada vazia, talvez fome. Eu vou acordar às três e lembrar dele, talvez não volte a dormir, esperando um novo amanhecer nesse país que perdeu o rumo.