quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Segunda parte - Conto de David Gonçalves

Rosalinda já fora linda, quando nova. Os anos passaram. Pressentia, agora, a vida fugindo, esvaindo-se. Os sonhos se desfizeram. A realidade era amarga. O espelho – o seu pior inimigo. Evitava-o. Até mesmo para se pentear. Estava velha. Profundas rugas no rosto. No olhar, o desespero. Todas as noites, ouvia a mulher da foice rondando a casa. Entrara, sem saber, no caminho dos ratos, uma rosca sem fim, e não sabia onde iria parar. Sem perceber, a vida se escoara.
O marido? Um bolha. Não compreendia por que se apaixonara por um inútil. Amor cego. Tantos homens no mundo e ela se deixara engabelar por Arnaldo. Não tinha ambição alguma. Contentava-se com pouco. Trabalhava para o sustento. E só. As contas do armazém aumentavam. 
– Fui tola! Que ódio...
Muitas amigas casaram-se bem e fizeram fortuna. Estavam ricas, vestiam-se como rainhas, esbanjavam dinheiro, viajavam aos Estados Unidos, ao Caribe, à Europa. Emília – a mais quieta e feia, nem sabia vestir-se para o baile do colégio – casara-se com um sujeito inexpressivo, que ria feito besta, o rosto cheio de sardas, e se tornara deputado, dono de meio mundo. Glorinha fumava maconha, bebia, praticava amor livre, vivia com os drogados, e se tornara esposa do vice-governador. Jacira, miudinha e vesga, mudara-se para o Canadá, casara-se, tornara-se mãe de família. E tantas outras. Mas ela, Rosalinda, que causava inveja, por duas vezes escolhida a mais bela do colégio, que disputara o concurso miss Quadrínculo e ficara em segundo lugar, e só não ganhara porque houve roubalheira, protecionismo, metera-se no caminho dos ratos, uma rosca sem fim. Arnaldo era imprestável. Nunca passara fome. Mas estavam encalhados numa vida horrível, jamais sairiam do lugar. Os dias passavam velozes. O que fazer? De bom no marido, somente os dentes de ouro. A boca rica. Nada mais. Quando sorria, os dentes brilhavam. 
– Os anéis se fecham! – exclamou, o estômago cheio de nódoas. – O que será de mim? Que vida miserável. Mas ele me paga!
Quando Arnaldo chegou do bar e começou a peidar por todos os cantos, ela se transformou numa estátua de pedra. A casa fedeu. Um cheiro insuportável. A pirraça do marido a deixou possuída. Havia em seu olhar a presença da morte. Estava resolvida a matá-lo. Colocaria fim nas suas angústias. Guardara, atrás da porta, a machadinha afiada, que era usada para matar e destrinchar porcos. Quando ele estivesse em sono profundo, daria o ultimato. (continua...)