quinta-feira, 29 de novembro de 2018

O diabo na garrafa por David Gonçalves

O boia-fria Frederico, recém-casado, sentia ciúme da sua esposa. E não sem razão. Era bonita, olhos grandes, a boca carnuda sensual. Quando ria, era uma princesa dos contos de fadas. Qualquer gesto que ela fazia em público, Frederico sentia o ciúme roer-lhe as vísceras. Mas não era por sua beleza que ele sentia ciúmes. Era esperta demais. Vivia provocando os homens e, por isso, falava-se muito sobre ela no bairro onde moravam.

Ao fazer uma viagem para colher algodão em outra cidade, que duraria mês inteiro, Frederico, não tendo outro jeito, fez pacto com o Diabo, que ficou como guardião. Era um sujeito feio, magricelo, barba ruiva esfiapada no queixo pontudo, olhos espertos e o corpo ágil, como se tivesse molas nas juntas do esqueleto. Mas a esposa de Frederico não era tola e logo percebeu que o guardião era o Cujo. Tudo que lhe ordenava, fazia ligeirinho, quase num passe de mágica. Só o riso era esquisito, os lábios puxados.
Ela, então, chamou-o e disse-lhe:
– Você é homem poderoso! Tem feito coisas que parecem milagre. Nunca vi homem assim... Por esta região, não há ninguém como você. Logo vi que você tem grandes poderes! Se tivesse conhecido você antes de Frederico...
O Diabo inchou-se, quase estourando de alegria por dentro. Andou, no terreiro da casa, de um lado para outro, feito pavão. Então, ela arrematou o plano:
– Gosto de homem assim, que não teme nada e tem grande sabedoria... Mas duvido que faça uma coisa...
– Ah, minha senhora, sou capaz de tudo. Conheço o mundo e os homens, campos e grotões, como a palma da mão – respondeu-lhe o Diabo, confiante e vaidoso.
– Não é capaz de entrar naquela garrafa!
Apontou-lhe uma garrafa vazia. Desafiado, as narinas incharam-lhe. Andava inquieto, sem disfarçar uma perna mais curta, olhos brilhando como fogo.
– É moleza, a coisa mais fácil do mundo! Quer ver?
Meteu-se garrafa adentro. No mesmo instante, a mulher arrolhou-a. O Diabo preso, rebolando igual lagarto dissecado, enraivecido, cuspindo palavrões, e a mulher rindo-se às câncaras. Depois do acesso de riso despudorado, ela o guardou o Diabo na garrafa na despensa, e foi gozar intensamente a liberdade ambicionada.
O casamento a sufocava; o ciúme doentio do marido a deprimia. Ansiava por uma vida sem freios. Então, fez naqueles dias o que achou que devia. Deu para o cabo da polícia, deu para o dono do armazém, aliciou o menino José, um rapazote de olhos azuis e cabelos loiros que servia à igreja como coroinha, dançou os bailões até de madrugada, sendo beijada e apalpada por diversos homens. Só sossegou-se quando o marido voltou.
Frederico foi recebido com muitos afagos. Desconfiado, foi logo perguntando:
– Onde está o empregado? – o coração desabalado, desconfiança trêmula nas faces.
– Ah, amor, o pobrezinho caiu no mundo, escafedeu-se, saiu de manhãzinha e sumiu.
– Impossível... Fiz um trato com ele...
– Sei lá o que deu nele! Sem avisar, desapareceu. Bicho esquisito, parecia o Diabo. Sinta o cheiro de enxofre que deixou pela casa...
Era uma catinga de pano queimado que ninguém podia agüentar.
– Que cheiro podre, mulher... como vamos tirar esse maldito cheiro? Está nas paredes, no chão, na mesa e cadeiras...
– Só há um jeito...
– Qual?
– Vá à igreja com esta garrafa e enche-a de água benta para espalhar pela casa.
Frederico saiu às pressas. No meio do caminho, porém, ele parou e abriu a garrafa. Pulou fora o Diabo. Estava vermelho de raiva. Cuspia fogo, as ventas inchadas.
– Mulher à toa, dos confins do inferno!
O Diabo contou-lhe o que se passara. Frederico, então, ao invés de encher a garrafa de água benta na igreja, encheu-a de água do ribeirão. Pediu ao Diabo que tomasse as suas feições e levasse pessoalmente a garrafa.
– Faça dela o que quiser!
Frederico dirigiu-se à rodoviária e partiu sem destino no primeiro ônibus.
Conta-se que ela ficou morando com o Diabo o resto da vida, sempre fogosa e satisfeita.