domingo, 24 de junho de 2018

A paisagem de dentro por Jura Arruda

Há um vento soprando gelado lá fora. Noite passada choveu. Esperança não telefonou. Nem para avisar que não vinha, que faltou gasolina, que conheceu um corsário e está a perseguir navios nos mares do sul. Tirei do armário as coisas que nunca me fizeram abrir suas portas. Penso em doar. Sobrou quase nada. Sobrou livros. Da janela, entra um raio de sol tímido e resistente a reclamar e agradecer. Observo-o e vejo pousar em sua luz um pássaro fotografado por Cristina dia desses. O jardim sempre foi mais habitado que a casa.

Não lembro como cheguei aqui. Faz tempo, segundos, décadas, oceanos. Vim pelas asas de um sonho bom e caro. Quis deixar a inércia que habitava minha alma, refém do rolo-compressor das necessidades diárias que me esmagou. Alma precisa se mexer, feito coração de mãe, com aflição. Esperança não telefonou. A máquina fotográfica repousa sobre a cômoda, como repousam os votos dos eleitores à espera de outubro. Arte pra começar, política pra recomeçar; copa do mundo na Rússia e um Brasil sofrendo goleada em um jogo sujo. Juiz ladrão!

E se uma borboleta batesse asas na boleia de um caminhão e um tufão se formasse no Planalto? Quem sabe você me olhasse com carinho, mesmo eu sendo tão de esquerda que me visto de utopia todas as manhãs? Quem sabe o sorriso bélico de um presidente ianque murchasse diante do sorriso de uma criança latina? E no Oriente Médio as metralhadoras e as crenças descansassem encostadas em uma parede para que os guerrilheiros civis e militares se regozijassem com dança e diversão?

Borboleta no casulo. O pássaro que habitava o raio de sol bateu asas. Esperança insiste em não dar notícias. Lá fora, o vermelho da camisa desbota e há uma vontade de não ser. É um cansaço que tomou as ruas e bateu forte por aqui, um desejo de mitigar a dor, plantar e colher tão somente. Ver uma folha cair da árvore e ressurgir adubo. Não é mais a avareza do tempo que me guia, porque agora sou serenidade, tanto quanto descrença; porque desacelerei o mundo e posso contemplá-lo daqui.

Chorei quando tudo explodiu, limpei as lágrimas quando o sonhou travou na rigidez dos que não entenderam nada. Agora sou refúgio do que não me permitiram. Tenho em mim tudo o que não fora arrancado.

Minha utopia quase dormente espera que o sol derreta o gelo, que a água purifique, que o olhar quente e úmido de uma criança sem perspectiva, mas com sonhos, aqueça seu coração frio.