Estava para encerrar as aulas da manhã. No ar, pela sala e corredores, o rumor confuso e ansioso dos alunos. A professora já arrumara a pasta e também aguardava o encerramento, visivelmente cansada. Restavam dois alunos para entregar a prova.
– Copie logo, Rodrigo. Não vai dar tempo – balbuciava Joel, erguendo a folha. – Estou cansado de dar cola pra você.
– Você escreve miudinho, quase não dá pra ver – cochichou Rodrigo.
A campainha tocou. Salas e corredores explodiram num barulho surdo. Vaivém confuso e turbulento, os alunos fugiam da escola para a liberdade. Parecia um formigueiro demandando da toca.
Os quatro colegas se encontraram na rua. Estavam afogueados. O calor do meio-dia abrasava os rostos.
– Vocês são uns molengas! Uma provinha de nada. Vou em cima das questões que sei. As que não sei, nem estou aí – comentou Marinho, as sardas colorindo o rosto.
Joel fez que não ouviu.
– Eu respondo todas. Mas, hoje, ficou uma no final. Mais uns minutinhos, eu dava conta – replicou Rodrigo.
– Sei bem o que você estava fazendo. Estava colando do Joel. Você vive na sombra dele. Senão o boletim vem colorido, com notas sofríveis.
Joel caminhava na frente. No meio-dia, as ruas fervilhavam. As pessoas estavam nervosas, atiçadas pela fome. Bares e restaurantes se entupiam e ônibus lotados circulavam com operários.
– Cale essa boca! Sou bem capaz de arrebentá-la. Não vivo na sombra de ninguém. Sei cuidar de mim.
– Ah, essa é boa. Você tem inteligência de jumento.
Discutiam, galhofavam, e caminhavam pela rua ensolarada, mochilas lotadas de livros e cadernos às costas.
– Se todos tivessem a inteligência de Joel, ninguém precisava frequentar a escola – voltou a dizer Marinho. – Mas é um tanto esquisito. Pra dizer a verdade, um tipo muito estranho.
Joel, na frente, apertava os passos e não ouvia o que os amigos diziam. Caminhava absorto, mas faminto.
Murilo, que nada havia dito, rompeu o silêncio:
– Parece que ele vive noutro mundo.
– Que outro mundo, nada. O que ele faz depois das aulas?
– Ajuda a mãe na padaria. Deve ficar sovando a massa. Ou ficar no caixa como boneco recebendo a grana.
Rodrigo parou.
– Perguntem pra ele. Não fiquem fazendo fofoca. Ei, Joel, o que você faz depois das aulas, tarde inteira?
Sem se voltar, Joel respondeu:
– Me dedico à pesquisa.
– O que você pesquisa? A vida dos sapos? Os hábitos das aranhas?
Riam, debochavam.
– Pesquiso o Universo. Tenho um pequeno telescópio. Sabiam que tem um montão de planetas? Sabiam que não somos os únicos seres no mundo?
– Ora, direis, ouvir estrelas – riu-se Marinho.
– Diga o que quiser. Estou interessado em desvendar o desconhecido. O homem não sabe nada.
E se pôs a caminhar. Tinha pressa. Estava prestes a descobrir um planeta distante que não era mencionado nos livros. Acelerou os passos. Atrás, os três amigos trocavam impressões.
– Do jeito que ele vai, não duvido que fique doido – disse Rodrigo. – Cá pra nós, já observaram que nas aulas de educação física ele não tira a roupa? Ao tirar a roupa, se volta pra parede. Se toma banho, sempre só. Sabem por quê?
Ninguém sabia. Mas estavam curiosos.
– Deus me livre se contarem o segredo!
– Conte logo, seu panaca – quase ao mesmo tempo disseram.
Rodrigo fez uma cara de espanto, uma cara de quem quer parecer perplexo, desentendido.
– Ele não tem umbigo.
Observava os companheiros. Estavam parados. Um olhava o outro com espanto. Era brincadeira? Pura galhofa? Mas Rodrigo parecia sério, olhava Joel se distanciando, encimesmado.
– Isso é mentira – rebateu Marinho. – Vá contar lorotas pra outro. Todo mundo tem umbigos.
– Mas ele não tem – voltou a afirmar Rodrigo. – Mas, também, o que é um umbigo? Enfeite pra barriga?
– Você viu?
– Eu vi. Mas não falei nada. Podia magoá-lo.
– Fala sério? Ele tem ou não tem?
– Não tem, já disse.
– Mentira. Todo mundo tem umbico.
– Pra que serve o umbigo? Apenas uma prova que você estava grudado à mãe. É através dele que o bebê se alimenta enquanto está na barriga da mãe. Ao nascer, é cortado e na ruptura fica o umbigo. Como veem, ele só serve para os nove meses. Do resto, é enfeite. Não serve pra mais nada.
– Assim mesmo, é esquisito não ter umbigo. Dá pra imaginar as meninas sem umbigo? Só se for bruxa...
– Acreditem se quiserem: Joel é produto de proveta. Não nasceu como todo mundo – voltou a aguçar a curiosidade Rodrigo.
– Como assim? Proveta?
– Escolhe-se um pai, e com uma seringa injeta os sêmens na mulher. Igualzinho o que se faz com as vacas lá da fazenda do meu pai. Lá tem um touro só, que meu pai diz que custou muitos dólares. O peão colhe o esperma dele e vai inseminando as vacas no cio. O pai diz que é pra melhorar a raça. De fato, desde que o touro foi comprado, a bezerrada está sadia, apurada e está rendendo dinheiro.
– Mas com gente é diferente...
– Que nada! Tudo igual. O homem é perfeitamente descartável pra gerar filhos. É só ir no laboratório e pagar, e pode escolher a cor dos olhos, dos cabelos, o desenho do nariz, baixote, alto, magro, gordo... Acho que foi assim que a mãe de Joel fez. Repararam que ele nunca fala do pai? Podem espiar na padaria: alguém já viu o pai dele lá? Alguém já viu o pai dele no colégio? Só a mãe dando um duro danado.
O sol do meio-dia queimava. Suavam. Mas não queriam se separar. Pareciam grudados por cordões umbilicais.
– Isto é segredo, hem! Se vocês abrirem o bico, o Joel vai ficar puto da vida, não perdoará ninguém. Entenderam? – intimou Rodrigo, olhando severamente a cara de cada um, ameaçador.
A contragosto, um a um se dispersaram, cada qual tomando o rumo de casa, com tanta curiosidade roendo.
Naquela tarde, rodou uma mensagem no WhatsApp:
Concurso: Descubram qual o menino que não tem umbigo? Prêmio: 6 garrafas de Coca-cola litro. Revelação: sexta-feira próxima.
* Faz parte do novo livro de David Gonçalves, a ser lançado no próximo mês "Meninos Descalços" sobre a infância sofrida, perdida.