Ninguém, na escola, gosta de ce-de-efe. Todos têm raiva, ódio, sei lá o quê. Garotas fogem de ce-de-efes. Elas gostam de jovens largados, peitudos, metidos, corajosos, puxadores de tragos, de aventurescos, de palavreado forte, girolês.
Você é muito certinho, dizem elas. Qual garota que deseja alguém sem sal? Elas querem aventuras. Garupas de motos, motores urrando. Poucas estão ligando pra essa palhaçada de Camões, Gonçalves Dias, Drummond, Vieira, Shakespeare.
Não respondo. Sou ce-de-efe. Se é isto, então é. Os jovens têm corpo saudável, bronzeado, tatuagens nos braços, algumas obscenas. São relaxados, cabelos compridos emaranhados, anelões nos dedos, detestam banho. Estão rodeados de moças, que riem, que se mostram como se estivessem numa vitrine.
Eles têm raiva quando os professores, sem querer, dizem que minhas notas são altas, que as minhas tarefas de casa são exemplares, que frequento a biblioteca. Daí, eles se vingam. Traça de livros. Filósofo. Camões. Machado de Assis. Come-letras. Papa-livros. Deizão. Puxador de saco. Cu-de-ferro. Ce-de-efe.
Dez, nove e oito, nove e meio, dez, dez... O primeiro da classe. Recita uma poesia aí, Deizão. Me coro até à raiz dos cabelos. Não me amole, digo. Uma poesia cabeluda, daquelas que têm pererecas saltitando. Fico furioso. Que gente estúpida, resmungo.
Se soubessem por que estudo tanto...
Por ela, sim, por ela. Aquela garota. Nem olha pra mim. Tão bonita, graciosa, olhos matreiros. No meio dos jovens atiçados, ela ri, dança, fuma, desnuda-se. Aos meus olhos, uma deusa. Mendigo por seu olhar, uma palavrinha só. Sou seu cachorrinho implorando por um sinal. Um estalar de dedos.
Não é só por ela que fico cego de tanto estudar. Por mim mesmo. Tenho que ralar mesmo. Essa gente é rica. Meu pai nunca teve fábrica de fiação, construtoras, nem fazendas, nem fundição, nem empresa de ônibus; nunca foi diretor de nada, não é dono de ferro-velho; não tem armazém de secos e molhados, não é cerealista, não é usineiro.
Meu pai honrado é catador de lixo pelas ruas. Tenho vergonha dele. Puxa uma carrocinha como boi velho e cansado à procura de latinhas de cervejas, de papelão, de sacos de plástico, de ferro enferrujado. Quase sempre está coberto de fuligem. Corre a cidade anonimamente.
Ah, se essa gente soubesse que sou filho de catador de lixo. Ah, se soubesse que, depois das aulas, eu separo o lixo recolhido em sacos para serem vendidos. Que meu pai tosse o tempo todo e, nas noites de inverno brabo, ele escarra sangue às escondidas. Que dá um duro danado para sustentar cinco filhos anêmicos, que recolhe comida das portas das casas, pedaços de carne, pizzas roídas, bolos, e trás pra nós.
Tenho pena dele. Um burro de carga. Não sabe ler nem escrever. Mas tenho raiva dele. Isso rói como soda.
– Ce-de-efe – me chamam. – Preciso de cola.
– O que você faz, Deizão? – pergunta ela, sem me olhar.
– Ele devora livros, sua boba. Não passa de um papa-livros – diz o jovem tostado de sol, tatuado, puxando-a para si.
Depois, começou a contar as façanhas do verão passado. Outros jovens da pá-virada haviam saído com o carro dos pais. Numa curva, estrada de terra e pedregulhos, o carro derrapou e acertou a árvore. O carro quase partiu ao meio.
Riem das façanhas. Neste verão rebentariam outro carro. São ricos, eu penso. Se uma coisa quebra, se amassa ou estraga, estão pouco ligando. São ricos. Ah, que se danem. Vou-me embora.
– Pra onde você vai, Deizão? – ela pergunta. Dou de ombros. Quem se importa. O lixo me espera. Deixa esse ce-de-efe pra lá. Quando ele saber bastante, serei o dono e posso contratar ele por um preço razoável.
Esses rebeldes, um dia, daqui a uns anos, serão grã-finos engravatados, donos de negócios herdados. Bando de cornos! Não estou nem aí para vocês. Pelo menos, deixem a garota em paz. O lixo me espera.
Meu negócio é estudar até ficar cego e revirar lixo. Preciso estudar, estudar, estudar... Não quero ficar como meu pai, carregando uma carrocinha como boi velho e cansado. Revirar, separar, ensacar lixo. Tudo fede, o mundo parece apodrecer. Tenho que dar conta desse montão de lixo. Plástico, papelão, ferro retorcido, latinha azedas de cerveja, panelas sem cabos...
Deus! O que é isso?! Ouço um chorinho de bebê. Apavorado, espalho o monte de lixo. Santa misericórdia! O que vejo: embrulhado num saco preto, um bebê recém-nascido, ainda ensanguentado. Não sei o que fazer. Seguro-o nos braços, desajeitado. Grito por socorro. Os vizinhos escutam, acorrem. Ah, pobrezinho, diz uma mulher mirrada. Oh, mundo cão.