Ai, mana, pobre de mim, estou arruinada, descendo a ladeira. A gente nunca se casa apenas com uma pessoa. Acredite. A gente se casa com a família.
Enquanto escrevia com a caneta esferográfica, cuja cabeça da caneta sofrera inúmeras mordidas, Jucélia espremia os lábios e quase os mordia também.
“A mulher que fui e o que sou hoje. Nesta favela, miséria, gente suja e maltrapilha. Um amontoado de barracos cobertos de zinco, amianto, adobes negros. Não há ruas. Só ruelas, descaminhos, desvios. Esgotos a céu aberto. Varejeiras. Água escura escorrendo entre o casario. Mijam os homens, mijam os cães. Defecam nos penicos, baldes de plástico e jogam pra escorrer no fiapo de água negra que escorre com preguiça. Um enxame de mosquitos da dengue zzzzz nos ouvidos.”
Tivera vida boa no campo. Agregados, é claro. Mas havia fartura, decência. Havia quermesses, havia missas, havia casamentos, havia passeios aos domingos. O paraíso. Moços pediam as moças em namoro, em casamento.
“Fui boba. Devia ter aceitado o pedido do Jorjão, nosso vizinho. Era feio, mancava, tinha uma perna mais curta. Todos riam dele. Mas, acredite, tinha bom coração. Era proprietário. Uma tirinha de terra. Mas a família dele estava plantada ali. Achei que todos iam rir de mim. Casar com um manquinho, nem morta, pensei.”
Escolheu um galanteador, o Terêncio. Boa pinta, dançava bem. Era meeiro. Não tinha terra alguma. As moças viviam dando em cima dele. Tinha pinta de galã.
“Ah, mana, nem queira saber o que é uma favela. Uma coisa é passar de carro pelas favelas, outra é caminhar pelos becos estreitos, encharcar os sapatos e chinelos na água escura e enlameada empossada, sentir o cheiro de mijos e merdas, ter que desviar o olhar diante de homem urinando nas fossas abertas, espantar as moscas gordas de nosso corpo, os vira-latas com manchas e feridas nas costas, ouvir a criançada berrando enquanto as mães espancam com palmas das mãos e cintos. Ah, mana, esse é o inferno que me pertence...”
O mundo revirou. A filha grávida, sem emprego. Não foi falta de aviso: sem pelo menos um diploma de graduação, você passará a vida varrendo o chão de outras pessoas e lavando suas roupas sujas. Menina burra. Engravidou-se. E agora? É isso que você quer pra si?, eu disse. Minha vida miserável? O rosto dela ficou vazio como um teto. Um riso tão amargo como losna. O bebê indesejado crescendo dentro dela. Nauseada, irritadiça, insolente – fecha-se dentro do barraco noite e dia. Não basta a minha infelicidade?, eu digo. Você é mais uma carga bicando minhas costas como corvo faminto.
“Minha desgraça, mana, começou no dia que me casei. Virgem, esperava ansiosamente por carinhos, promessas de paraíso. O que ele me deu? Hoje, eu conto. Sabe o que ele fez? Naquela noite, ele se mostrou bruto, me espancou. É pra você aprender a me respeitar, disse. Sou o homem da casa. Sou quem manda aqui, ouviu? Me arrastou pela sala me puxando pelos cabelos e depois pelos tornozelos. Esbravejava. Em seguida, dizia: ‘Amo você, amo você, sua piranha’. Por que faz isso?, gritei. Ele continuou me arrastando. Minha cabeça ia batendo nas cadeiras, pé de mesa. Voltava a me espalmar no rosto. Dizia: ‘Amo você, amo você, sua piranha’. Isso, eu juro, não pode ser amor.”
Veio a geada negra. Começou o êxodo. Os proprietários não queriam mais ninguém morando em suas terras. O cafezal queimado pela geada, só as varas espiando o céu. Viemos parar aqui, nesta vila de miseráveis. Tive que ralar pra valer nas casas dos ricos. O que ele fez? Ficou nos botecos enchendo a cara. Uma sova toda noite como recompensa. Uma criança pra criar.
“Quando fui embora, ele bebeu veneno de rato. Ficou duas semanas no hospital vomitando sangue. Vieram me avisar. Miserável, eu disse. É o que você merece... Olhava pra mim e pedia perdão, voz engasgada, olhos de peixe morto. Pra que perdoar? Se sarasse, voltaria a me surrar. Antes só do que mal acompanhada.”
Ah, se tivesse casado com o manquinho... Era proprietário, pelo menos. Não estaria enfiada nesta favela. Agora, com a filha grávida...
“Ai, mana, nunca venha me visitar. Não quero que tenha piedade de mim. É só. Adeus.”