Está frio lá fora. Mas não frio demais. Uma friagenzinha. Dentro de casa, a vitrola está tocando tão alto que as janelas vibram. Garrafas de cerveja estão sobre a mesa e cigarros queimados no cinzeiro. Milionário e José Rico esgoelam no estéreo. Venâncio está sentado no sofá, esparramado como saco de batatas e fuma um cigarro.
Deus do céu, Venâncio! – esbraveja Jurema, vindo da rua. – A sala parece um nevoeiro. Essa música de corno me dá enjoo. Eu me ralo o dia todo na casa da patroa e você fica modorrando.
Do quarto, sai a filha de 13 anos, um tanto gorda, a blusa desabotoada.
– Mãe, mãe! Ele tentou me agarrar. Tive que me fechar no quarto.
– O que está dizendo?
– Não dê ouvidos – grita Venâncio, voz pastosa, bêbado.
– Ele pegou nos meus seios, rasgou a blusa, beliscou minhas pernas! Olha aqui – mostrou os sinais dos beliscões. – Falou que sou melhor que você, mamãe!
– Eu posso explicar – acudiu Venâncio, tentando abrir outra cerveja.
Viviam juntos há seis meses. Não eram casados. A filha era de outro, que desaparecera. Disse que ia comprar cigarros no armazém, num sábado à noite, e nunca mais voltou. Jurema, então, vindo do trabalho, entrara no bar para comprar Coca-cola, já noite, e foi abordada por Venâncio. Dias após estavam morando juntos. Era pedreiro, vivia de bicos.
– Seu ordinário! Não faz nada o dia inteiro. Só bebe. Ainda quer agarrar a menina. Seu ordinário! Eu me ralando como diarista e você mamando cerveja.
– Eu posso explicar...
– Você passou dos limites. Trabalho como camelo pra sustentar um bêbado tarado. Rua! Pegue suas coisas. Saia já desta casa.
Por várias ocasiões, ele tentara manter-se sóbrio. Evitava amigos, bares, reuniões sociais. Mas, de repente, sentia-se angustiado, deprimido, e voltava a beber mais do que antes.
Jurema pegou o disco na vitrola e jogou de encontro ao piso áspero, pisoteando-o. Estava endemoniada.
– Caia fora daqui e trate de nunca mais aparecer. Não dá conta nem de mim. Vou chamar a polícia. Quem sabe, você cria vergonha. Um vagabundo. O dia todo mamando cervejas.
Venâncio levantou-se com dificuldade. Olhou pela janela. Já era noite. Viu muitos carros passando na rua e pessoas caminhando na calçada.
– A garota está mentindo. Eu não fiz nada.
– Não seja engraçadinho, babaca – xingou a garota.
– Isso é loucura! – bateu na mesa com a mão espalmada. O cinzeiro chegou a pular. O copo tombou de lado e rolou para longe. – Sou inocente. Essa sua filha está se oferecendo pra todo mundo. Está com fogo no rabo.
– Vou chamar a polícia! – e foi na direção do telefone. – Estou cheia. Vá dando o fora.
Venâncio, contrariado, resmungou: estou indo embora. Essa casa é bananeira que deu cacho. Você já me deu muitas coisas pra lembrar.
Passadas trôpegas. Foi para o quarto e tirou uma mala velha do armário, imitação de couro, um fecho quebrado, e com arranhões. Podia sentir no rosto a aragem noturna que vinha do buraco da janela. Vou logo de uma vez, disse. Sou dono do meu nariz. Tinha que se livrar dessa casa de doidos. Jogou a mala em cima da cama e atulhou nela roupas e tudo o que podia, inclusive algumas revistas para ter o que ler. Quase ia esquecendo do barbeador, creme de barbear, desodorante, escova de dentes. Não ficaria naquela casa de doidos. Do quarto, ouvia as duas falando baixinho na sala. Ia esquecendo do cortador de unha. Vestiu o casaco e pegou a mala e foi arrastando-a até a sala.
– Vá logo. Você já fez muito mal nesta casa – disse ela. – Suma. Nos deixe em paz.
– Vou, sim. Mas lembre: essa tua filha é uma mentirosa. Fica inventando coisas.
Deu uma última olhada na sala e foi saindo, trôpego. Ah, ia esquecendo. Abriu a geladeira, pegou uma garrafa de cerveja. Abriu-a nos dentes.
– Não espere por notícias.
Encarou mãe e filha, que recuaram.
– Bem que essa dondoca dá um bom caldo – apontou a menina. – Foi uma pena não ter sugado este néctar.
Jurema nocauteou-o com um bastão de basebol. Rolou na porta da rua, com a mala e a cabeça rachada.