quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Pra lá, nunca mais de David Gonçalves

Acabara de anoitecer. Na meia-água, a mulher grávida e de olhos sofridos lavava os pratos e panelas, enquanto a menina de quatro anos brincava com o menino de dois, ainda sujos, no sofá rombudo. De repente, as batidas na porta.
– Sou eu, abra logo.
Ela se assustou e deixou o prato gasto cair e quebrar-se sobre a pia.
– Ah, meu amor, quanta saudade – foi dizendo Pereba, abraçando-a com garras de tamanduá.
– O que deu em você? Fugiu, não é?
Abraçou também as crianças. Estava com fome. Panelas vazias. Só um pedaço de pão seco sobre a mesa. Mordeu o pão com força, ávido. Em seguida, pediu um copo de água.
– Não está contente, mulher? Estou livre. Pode me beliscar. Sou eu em carne e osso.
– Você fugiu, não é?
Pereba se calou, esfregou as mãos nervosamente, riu sem graça, contraindo os lábios.
– O que eu podia fazer? Aquilo não é vida, Rosedália. Mas não fui o culpado pela fuga. Foi o Negão Fumaça. Eu não fiz nada. O Negão Fumaça esgoelou a guarda, fez reféns. Se eu não fugisse... Qual passarinho que vê a porta da gaiola aberta e não foge?
– Fugiu e veio direto pra cá, seu tanso! Por onde acha que a polícia vai começar a procura? Pela igreja? Sua anta! Por aqui.
– Parece que não está contente em me ver. Pra onde iria?
– Sei lá.
– Estava com saudade de você, das crianças. Vem cá, me dê um beijo.
Ela foi, sentou-se no colo dele, as crianças enlaçadas nele. Rosedália amava-o, apesar dos pesares. Ele tirou do bolso dois pirulitos em forma de coração e deu aos filhos.
Uma coruja piou lugubremente sobre a vila, noite afora.
– Você não pode ficar aqui. Logo a polícia bate à porta. Pegue o que quiser, roupas limpas, e caia na estrada.
– Só uma noite, amor. Eu não aguento de saudade.
Rosedália não disse nada. Sentia o calor daqueles braços fortes invadir-lhe o corpo e queimar. Respondia-lhe aos beijos com mais afagos.
– Crianças, já pra cama. Eu e seu pai temos muito que conversar.
A contra-gosto, elas foram para o quartinho ao lado, insones, inquietas, orelhas levantadas. Pereba beijou a barriga bojuda da mulher.
– Foi da última visita?
– Foi. Eu disse pra você usar camisinha. Mas você parecia um touro selvagem.
Ele riu. Faltavam-lhe três dentes. Uma briga no pátio da cadeia e um murro como coice de cavalo.
– Vem, estou seco por uma trepada.
A meia-água parecia incendiar, o madeirame estalando, a cama ringindo. As crianças, no quartinho, ouviam e arregalavam os olhos. Depois, o silêncio. Um guarda noturno apitou longe. De repente, Rosedália sentou-se à cama e, desesperada, começou a falar:
– Como vamos viver agora? A gente vive melhor com você na cadeia. O governo paga salário, bolsa família, vale-gás, tantas coisas... Fugido, não vamos receber mais nada. Eu e as crianças passamos a viver decentemente depois que você foi preso. Do que vamos viver? De vento? De migalhas? Oh, miséria.
– Se dá um jeito, mulher. Pra lá, nunca mais.
– Quem vai dar trabalho pra um assassino?
– Faço um serviçinho aqui, outro lá, a gente vai vivendo.
– Não quero viver desse jeito. Você tem que voltar pra cadeia. Preso, dá mais lucro.
– Pra lá, nunca mais.
– É o que pensa.
Rosedália desabou num choro enraivecido.
De manhã, Pereba e as crianças dormiam. Ela, sorrateira, foi à rua e, de um orelhão, denunciou-o. Meia hora depois, a meia-água era invadida. Pereba, semiadormecido, olhava atônito as armas apontadas.