quarta-feira, 3 de junho de 2020

O menino que não tinha umbigo (final) de David Gonçalves

Seis meses depois, nada importava a Joel. Estava um perfeito idiota, como se alguém tivesse amassado seu cérebro.
Mas a escola estava contente: tudo voltara à normalidade. Tudo seguia o seu curso. A vida, como se diz, segue adiante.
Joel, entretanto, seguia à marcha-ré.
Desleixara-se. Sujo, cabelos desgrenhados, olhos sem brilho e cansados. Emagrecia. Parecia que algo sugava-lhe a seiva.
– O que há com você? – indagavam. – Parece mendigo.
– Não há nada.
– O que era... O que é.
– Sou o que sou.
– Um idiota? Pelo menos, tome banho. Você fede.
– Vire o nariz pra outro lado.
Tornara-se rude, grosseiro.
Quase não falava. Sentia mágoa. Enfrentava os olhares de cabeça baixa. Frangia as sobrancelhas, um pouco arqueadas, e conservando os lábios espremidos, como para assobiar, espiava de soslaio o infinito.
Rodrigo o interpelava:
– Foi só uma brincadeira. Você está fazendo disso uma tempestade. Está bem, fui culpado, nossos pais já se entenderam, eu não queria magoá-lo. Já pedi desculpas. Você está bancando o durão...
O sol da primavera castigava. No meio-dia, as ruas exalavam piche derretido.
No fundo, Rodrigo encenava. Não acreditava muito no que dizia. Joel sabia disso. Apertava os passos, deixando-o para trás.
– Você está procurando pelo em ovo. Foi uma brincadeira. 
Joel parou e olhou-o duramente. Era um olhar indiferente, irônico, sem alma, como se olhasse para objeto.
– Cale-se – disse, repentino. – Agora sou igual a todo mundo. Pertenço aos alunos de sólida mediocridade. Penso o que todos pensam. Acho os professores engraçados, descubro defeitos nos amigos, não me incomodo com notas ruins. Está satisfeito? 
Apressou os passos, distanciando-se.
. . . 
Foi um dia primaveril muito estranho. O sol era apenas um pobre brilho leitoso e débil atrás de espessas nuvens sobre a cidade. Ruas e jardins secos chamavam a chuva logo de manhã.
Tudo parecia correr como sempre no colégio. Havia, entretanto, uma ansiedade angustiante pairando. No meio da aula de história, Joel se levantou e, inesperadamente, evadiu-se da sala, deixando os alunos assustados.
– Onde vai, Joel? – a professora interpelou. 
Não houve resposta. Seus lábios tremeram, os olhos se turvaram. Mas seguiu pelo corredor e, diante do portão de ferro fechado a cadeado, ele contornou o colégio e saltou o muro. Segurava a pasta debaixo do braço. De vez em quando, olhava para trás, receoso, e seguia adiante, como se obedecesse a um chamado. Suas mãos, que apertavam a pasta, estavam molhadas e sujas com a ferrugem e o limo do muro que pulara. Transfigurado, os cabelos revoltos, o vento morno o empurrava pelas costas e seu corpo magro se movia mais rápido. O vento, cada vez mais forte, acelerava seus passos incertos. As nuvens baixavam pesadamente a ponto de tocar as árvores e as pessoas procuravam refugiar-se em suas casas e armazéns. A poeira levantada cheirava a doce de goiaba fervendo no tacho. De repente, formou-se um insólito redemoinho, a folharada poeirenta rodopiando, que se erguia num grande cone aberto ao tocar as pesadas nuvens, e envolveu Joel como se envolve um bebê numa manta, e o ergueu feito palha, e o cobriu com partículas de terra. Como veio, o redemoinho se foi, e tudo voltou ao que era, quando os primeiros pingos d’água, grossos e pesados, cobriram o asfalto, casas e jardins.
Choveu dois dias sem parar. Houve raios, alagamentos, deslizamentos de morros e soterramento de casas.
A notícia explodiu como granada na cidade: o filho da padeira havia sumido. O fotógrafo Kenzaburo, o Japa, passou a mostrar uma fotografia que tirara do insólito redemoinho e, nela, parece uma figura estranha sendo tragada. Uns dizem que é um cão, outros que é um menino. Outros nada veem.