segunda-feira, 1 de junho de 2020

Conto 3: O menino que não tinha umbigo - David Gonçalves

O diretor se mostrou espantado. Doralice, mãe de Joel, ainda tinha massa de pão e de pizza nas unhas das mãos e, nervosa, cobrava explicações do diretor. Provas? Sim, havia prova contundente. Mostrou o celular do filho. 
– Veja, isto está acontecendo debaixo de sua barba. Não é invenção. O que me diz?
– Isto é grave, muito grave! – soletrou o diretor, levantando-se da escrivaninha, empaledecido.
– O menino não quer vir mais à escola. É preciso providências urgentes. Nada de passar as mãos nas cabeças dos riquinhos e achar que tudo está encerrado. Espero que seja duro, pois não deixarei o caso acabar no ar. Do contrário...
– Vou acabar com essa farra hoje ainda. Volte pra casa e convença o seu filho a frequentar as aulas.
– É o que farei. Mas não me obrigue a ir até a polícia e registrar a queixa. A coisa pode ficar braba.
Ambos se confrontaram, como se medissem forças. 
– Pra que serve um umbigo, afinal? Só um sinal de nascença, uma cicatriz de nascença – disse com certa calma Doralice, mas os joelhos dela tremiam de raiva, medo e sensação de impotência.
O diretor tentava colocar panos quentes. Mostrava-se chocado, mas ao mesmo tempo o fato o fascinava.
– Afinal, isso não passa de lorota, não é?
– Não é lorota. Quero que haja punição.
– Bem, o que posso fazer? Passar um sabão nestes pirralhos – voltou a sentar-se pesadamente na poltrona. – Enfim, Joel tem umbigo ou não tem? Não existe ninguém sem umbigo.
– Não tem umbigo. 
– Como assim?
– Fiz inseminação artificial. Nasceu sem umbigo. Pra que serve um umbigo, me diga. Nem por isso deve ser motivo de brincadeiras. O rapaz não quer vir mais à escola, nem sovando.
– Muito estranho. Ainda não tinha ouvido algo semelhante.
– O que vai fazer?
– Volte ao trabalho. Cuidarei disso imediatamente. 
– Espero que sim.
Depois que ela saiu, o diretor se jogou na poltrona, exausto. Tinha visto aborrecimentos de toda espécie, brigas, ofensas, alcunhas, gordinhos, tição de fogo, pau de virar tripas, cara de sapo... Mas igual a esta ainda não. Não tinha umbigo. E daí? Servia pra alguma coisa? Só Adão não tinha umbigo, pois não nascera de uma mulher, mas de criação divina. 
Fez uma reunião abrupta com os supervisores e, no final da tarde, tinha desmantelado a rede social, e o jovem autor da brincadeira inusitável estava plantado a sua frente no gabinete.
– Então, seu Rodrigo, que brincadeira é esta? 
Mostrou as mensagens do WhatsApp. Rodrigo estava rubro, como se a pele pegasse fogo.
– Já pensou no tamanho desta maldade? Isto é caso de polícia. Já comuniquei os seus pais.
Rodrigo suava e gaguejava.
– Foiiii... umaaa... brincadeira... Acheeeiii que...
Os pais de Rodrigo entraram no gabinete. Estavam perplexos. 
– O que este pirralho aprontou desta vez?
O diretor se fez de autoridade máxima.
– Pra mim, é caso de polícia. Ouçam e avaliem por si mesmos. A mãe deste menino quer ir adiante com o caso. E agora?
Os pais estavam mudos, não sabiam o que dizer, esfregavam e circulavam as mãos, confusos.
– Sugiro que conversem com a mãe nesta sala. Coloquem em pratos limpos. Não quero dúvidas. Estão dispostos a conversar com ela?
Estavam. Pedir desculpas e assumir os erros do filho – o que podiam fazer, antes que o caso fosse adiante.
Foi uma reunião tensa. Diz-que-diz. Ameaças. Desculpas. Silêncios. No final, os ânimos estavam refreados.
Doralice voltou a sovar a massa dos pães.
– Tanta confusão por um umbigo – maldisse o diretor, exausto, enquanto espiava pela janela o burburinho dos alunos no pátio.

. . .

Tudo estava em paz, menos para Joel. Passava as noites no telescópio, sondando o Universo. Prometera à mãe que voltaria às aulas, e voltou. Mas não era o mesmo. Antes, inteligente, arguto, agora não passava de uma massa reativa. No meio das aulas planava nas suas viagens espaciais. Estava na carteira como missa de corpo presente. Sentia-se conduzido pela moça de corpo peludo, sem umbigo, pelas encostas de Marte, como se passeasse pelos vales na Terra. Ela o convidava para ficar em Marte, arrastava-o para lugares desconhecidos, cavernas, crateras. De lá, ele divisava a Terra, um minúsculo ponto azul.
– Joel, o que pensa disto?
A professora terminara uma lição sobre os romanos, a grandeza do império, reis e súditos, papas e santos.
Joel apurou a vista e aguçou os ouvidos.
– Eu não sei.
– Como não sabe? Você não quer responder – disse a professora, estupefata – Será que estou falando às paredes?
Joel afastou uma nuvem quase invisível.
– Não sei mesmo – voltou a responder.
– Vamos, mais uma chance: pense bem. Falei do assunto nesta aula. Não precisa usar da memória.
Joel ficou de pé. Disse, com determinação.
– Eu não sei.
– Fique na sala depois da sineta.
O cérebro de Joel parecia avariado, zumbia perdido. Na sala vazia, a professora postou-se a sua frente.
– O que está acontecendo? Você sempre aprendeu as lições com facilidade, como se já soubesse antes. 
– Eu não sei do que está falando, professora. Sempre fui assim. 
– O que está acontecendo com você, afinal? É aquela história estúpida do umbigo, não é? 
Joel não respondeu.
– Você parece mudado. Anda distraído, no mundo da lua, e tão desinteressado. Conte o que está havendo.
– Nada pra contar. Sempre fui assim.
Fechou-se, uma pedra.
Havia mudado. Qualquer um poderia perceber. Tornara-se desleixado, não estudava nem cumpria com as tarefas. Pior ainda: afastara-se dos amigos. Achava-os chatos e maldosos.