Era noite, chovia e fazia um pouco de frio. Eu estava em casa. Da janela de meu apartamento eu via um homem na calçada lá embaixo. Ao lado, um pequeno cachorro andava de lá para cá. Tinham acabado de sair de um prédio próximo, mas o dono parecia impaciente, enquanto o animal saltitava e farejava por todos os lados. A chuva se intensificou e logo os dois retornaram para dentro.
Permaneci olhando os edifícios e ruas da vizinhança, iluminados por luzes amarelas fracas. Bebi mais um gole de vinho cuja garrafa havia acabado de abrir. Estava pensativo. No dia seguinte embarcaria para uma rápida viagem de férias. Antes porém ainda palestraria na abertura de semana acadêmica de direito. Falaria sobre alteridade e superação do ódio no contexto do sistema de justiça criminal, tendo preparado um roteiro fundado na minha especialidade, ou seja, nas penas, nas garantias constitucionais e nos direitos humanos. Depois da palestra retornaria para casa, arrumaria minha mala e iria-me embora, não para Passárgada, mas para Paris, a cidade aonde coloquei os pés pela primeira vez 24 anos antes e que desde então se tornou um refúgio para mim, um lugar que me embala e alimenta meus sonhos. Dois dias antes eu estava dentro de um pavilhão com seres humanos encarcerados. Dois dias depois estaria à beira do rio Sena. Essa dicotomia, que permeia meu mundo e certamente o mundo de outras pessoas, sempre me fez refletir. Naquela noite não foi diferente. Como podia eu desfrutar do que era mais belo para mim, com conforto e tranquilidade, se existiam pessoas que dormiam no chão, passavam frio, eram confinadas em navios negreiros, longe do sol, da luz, longe da esperança.
Não é preciso ir para o velho continente para sentir essa inquietação, eu sei, basta olhar pela janela e ver que a noite tempestuosa é agradável para quem está na segurança de seu lar, não para quem está exposto à intempérie. Ao menos indiretamente todos somos responsáveis de tudo perante todos, já ensinava Dostoiévski, mas isso, pensei, não podia ser assumido com tanta intensidade, ao ponto de não mais termos a satisfação de usufruir de momentos de júbilo. Ocorre que para mim, como juiz da execução penal, há responsabilidade direta por seres humanos que cumprem penas, em especial os condenados e recolhidos no sistema prisional sob minha jurisdição. E eles estavam lá, naquele minuto, os do presídio dividindo celas superlotadas, em 20 indivíduos ou mais num cubículo feito para 6, no máximo 8, todos ouvindo o barulho das grades e portas de ferro que propositadamente estalam e ensurdecem.
Da mesma forma como consigo me realizar nas ocasiões em que estou com minha família, meus amigos, quando confraternizamos, nos apoiamos e trocamos afetos; da mesma forma que me sinto absurdamente vivo quando em Paris (quem, especialmente em férias, não se sente?), quando minha alma flana e meu espírito se encontra com escritores, pintores, filósofos, no bolso carrego a sensação de que o regozijo experimentado, ainda que pleno, é finito.
Ninguém é insubstituível, não podemos ser tão pretensiosos e acreditar que somos tão importantes assim, com poder da felicidade ou tristeza sobre outros seres humanos,
mas em alguma medida essa responsabilidade existe e a profissão que exerço não deixa dúvidas. Com minha caneta, em tempos obscurantistas e de criações de medos e por consequência de ódios, tenho a obrigação de defender a Constituição, as garantias fundamentais e o fundamento da dignidade da pessoa humana.
Então, não sabendo ser diferente, sendo mais forte que eu, naquela hora, naquele final de noite, véspera de uma viagem que me traria felicidade, eu lembrei dos que não tiveram a mesma sorte. Esse conflito jamais me deixaria, jamais! Restava-me o comprometimento de que enquanto eu vivesse neste país de profunda desigualdade social e econômica, com uma absurda concentração de renda de um lado e extrema miséria de outro, a busca da justiça para a vida dos condenados em mim habitaria. Era ela quem eu segurava, é ela quem me segura.