O irmão do teu pai era louco, diz minha mãe. Faltavam alguns parafusos na cabeça. Mas eu gostava do tio Zósimo. Trazia doces nos bolsos e dava pra mim e minha irmã. Guiava-se pelos provérbios, essa fala milenar, recitando-os em voz alta, meio roufenha. Onde ele morava? Minha mãe dá de ombros. Sabe-se lá. Aparecia, sumia.
Olha, Antônio – disse ao meu pai numa de suas visitas – os provérbios estão errados. Estou consertando um a um. Que trabalhão. Veja: Quem ri por último... ri melhor. O que acha? Alegria de pobre... é impossível. Há-hã-há. É dando que se... engravida. Minha mãe ficou vermelha. Quem com ferro fere... não sabe como dói. Meu pai riu. Quanta asneira, Zósimo. Por que não se ocupa com coisas sólidas? Mas ele continuou: Quem tem boca... fala. Há-hâ-há. Quem tem grana é que vai a Roma. Não é genial? Gato escaldado, morre. Nosso gato cinzento pulou assustado da beira do fogão a lenha. Quem espera, fica de saco cheio. Estou esperando a fortuna até hoje e nada. Quando um não quer... outro insiste. Meu pai balançava a cabeça, desaprovando. Os últimos, Antônio, serão os desclassificados. Há males que vêm pra foder tudo. Há-hã-há! Ria como mala de mascate. Virou-se pra mim: olha essa, menino: se Maomé não vai pra montanha é porque ele foi pra praia. Voltando-se pra minha irmãzinha: Quem dá ao pobre, cria filho sozinha. Minha mãe arrastou a irmãzinha casa adentro, temerosa. Ei, Antônio, veja essa: depois da tempestade, vem a gripe ou a enxurrada. Gostou? Mais essa: em terra de cego quem tem um olho é zarolho. Quem cedo madruga, fica com sono o dia inteiro.
Meu pai ria, contrariado. Minha mãe ria, preocupada. Eu e minha irmã ríamos sem saber. Se viver mais tempo, vou consertar todos os provérbios. Bem, pelo menos, é uma ocupação, disse o pai, um pouco constrangido. Tio Zósimo sacou do bolso a lista de provérbios consertados e me entregou. Toma, menino, é pra você não esquecer. Guarde bem, quem sabe você pendura na parede.
No meio da noite, todos dormindo, levantou-se e gritava boa-noite e sumia na escuridão, batendo a porta com força.
Pra onde ele foi, mãe? Sei lá, pra algum lugar. Ele tem bicho carpinteiro. Está piorando, disse o pai. Ora, que despropósito: consertar provérbios! Estão pelo mundo há séculos. O que é um provérbio, pai? Frases decoradas por nossos avós. Minha mãe explicou melhor: uma linguagem que diz a sabedoria da gente. Na Bíblia, há de montão. O teu tio está estragando eles. Não precisam de conserto algum. Em vez de trabalhar ele gasta o tempo com essas bobices.
O tio Zósimo demorou pra voltar. Eu já tinha feito a primeira comunhão. Padre Deuteronômio havia dividido a cidade em Bem e Mal. De repente, tudo ficou confuso. Mas eu gostava de confessar. Aquelas casinhas me encantavam. Aqui outra vez, moleque! O que fez? Sobre a divisão do Bem e do Mal. Não entendi. Tá bem, vou explicar. Pela última vez. Vê se presta atenção. Quando a gente escolhe o Bem, Jesus fica contente. Mas quando escolhe o Mal quem se diverte é o Diabo. Agora, vai embora. Tenho mais gente pra confessar...
Voltava pra casa pensando: que parte da cidade era do Bem? Qual a do Mal? Pra mim, tudo estava misturado. Então, aos poucos, fui dividindo: a nossa casa, a igreja, o colégio, os passarinhos – pertenciam ao Bem. E a parte do Mal? Minha mãe não teve dúvida: os botecos, os bêbados, as mulheres que ficavam lá, o clube das Malvinas (onde haviam danças e os homens solteiros e casados se divertiam a noite inteira), os jogadores de baralho, os briguentos, os que não iam à igreja. O pai, então – eu disse. Não, se assustou minha mãe: ele não vai mas acredita em Deus, é homem honrado. Os vadios, os que vão assistir filmes proibidos, os ladrões – esses queimam no inferno. O tio Zósimo? – perguntei. Está de que lado? Não me respondeu.
Fiquei matutando sobre a divisão da cidade: o paraíso e o caldeirão de azeite quente.
Até que, numa tarde calorenta, chegou meu tio. Estava cansado, empoeirado. Já não consertava provérbios. Queria tirar uma dúvida com meu pai. Serviu-se do jantar, regalou-se, depois sentaram-se no varandão. Parece que ele está pior, resmungou minha mãe. O suor dele fede como gambá. Fiquem aqui, ordenou. Mas eu me escapei. Fiquei rondando o tio, orelhas aguçadas. O que tem feito, Zósimo? Quase nada, ando muito preocupado. Com o quê? Mexia os pés, impaciente, e alisava o bigode um tanto esbranquiçado. Pensava, triturava as ideias, longínquo. O Diabo ouve rádio? Deve ouvir. Mas por que está perguntando? Tio Zósimo mirou a escuridão, o céu estrelado. A gente é muito miudinho, disse. Por um espaço de tempo, ouvia-se o cricrilar dos grilos. Quero anunciar na rádio que desejo vender minha alma. Preciso de dinheiro. Será que ele ouve mesmo? Meu pai ficou um tempão quieto. Depois, disse: acho que não precisa anunciar. O Diabo sabe antes da gente. É, pode ser, disse o tio. Houve outro silêncio prolongado. Enfim, a voz do pai: quanto você quer por sua alma? Dólar, libra esterlina, reais... Ah, eu quero em ouro!
Minha mãe me puxou pelas orelhas. O resto da conversa se perdeu. Já pra cama, ordenou. Isso não é conversa pra menino.
No meio da noite, sonhei: lá estava tio Zósimo do lado do Mal, rindo pra mim. Acordei suado. Tio Zósimo estava no meio da casa, dizendo: Boa noite, já vou indo. Os últimos serão os desclassificados. E se foi.
Nunca mais apareceu. A não ser uma caixa de madeira, que um desconhecido entregou. O que havia dentro? Os ossos dele, secos, escovados, e um bilhete: me enterrem debaixo de uma boa sombra.