Entro no bar à noite, quase deserto. O balcão ocupa todo o lado esquerdo. Do lado direito, espalhadas, umas dez mesinhas com toalhas de plástico. Um casal numa mesa. Detrás do balcão, um gordo de bigode, camisa de mangas arregaçadas. Peço uma cerveja. O gordo tira a garrafa de um frigorifico, puxa um copo de baixo do balcão e os leva à minha mesa. Tem o andar bamboleante. Derrama a cerveja no copo, fazendo espuma, e pergunta:
– Mais alguma coisa?
Faço que não com um gesto da mão.
– O senhor não é daqui, não? Veio em visita?
– Vim a trabalho. Resolvo uns problemas e me mando pra São Paulo.
– E como é sua graça, se me permite?
– José.
– Coincidência. Também sou José. Todos me conhecem por Zé do Bar. Mas não sou daqui, não, sou gaúcho de Santana do Livramento, conhece?
– Isso não é no Uruguai? Aquela cidadezinha que tem o centro dentro de um muro?
– Não, lá é Colônia do Sacramento.
– Ah, bom.
– O nome confunde muita gente.
– Ajeitadinho o seu bar. Tem boa freguesia?
– Não posso me queixar. Todos aqui me conhecem. O ponto é bom. Dá pra sobreviver – diz com um risinho.
– E nenhum problema?
– Problema?
– É. Concorrência. Calotes, inveja, essas coisas. Pergunto porque já trabalhei em bar.
– Isso até que não. Mas tem alguns canalhas me ameaçando, querendo cobrar proteção. Tem otário que paga. Do Zé do Bar é que eles não conseguem nada.
– Não tem medo que lhe façam alguma coisa?
– São uns cagões. É tudo conversa, mimimi. Alguém tem que resistir, mostrar a eles que não são os donos do pedaço.
– Faz bem. Não se pode baixar as calças...
Gostei do cara, senti firmeza, sinceridade naquela cara gorda, brilhosa de suor. Lembrei de seu Teodomiro, que tinha um barzinho em nosso bairro. Eu lhe fazia pequenos serviços e ele pagava com mantimentos para minha mãe. Nunca passamos necessidade. Acho que sua generosidade tinha um motivo: minha mãe era uma viúva ainda jovem, bonita. Mas era um bom sujeito. Quando bebia uns dois tragos era capaz de entregar todo o bar para os miseráveis da vizinhança... Paro por aí. Essas lembranças de infância vêm uma atrás da outra, como fieira de peixes numa rede.
Escondo no bolso minha mão esquerda, atrofiada. Nasci com esse defeito. Foi duro encontrar um serviço, ainda sofro preconceito. Mas faz uns três anos ando de lá pra cá, me virando, cumprindo meu destino. Foi o que me trouxe a esta cidadezinha. Faço meu trabalho e volto pra São Paulo.
O casal sai, o gordo vai recolhendo as garrafas e pratos, depois passa um pano na mesa, limpando as gotas de bebida e os farelos de x-salada, ajeita as cadeiras. Ficamos sozinhos no bar. Ele passa um lenço na testa. Fala que já vai fechar, mas que eu não me preocupe: “pode terminar sua cerveja”.
Sorvo calmamente a bebida, olho sua barriga ampla, o rosto brilhoso, de um cara feliz, realizado. Pergunto:
– Tem família, Zé?
– Tenho. Mulher e dois filhos. O maior está na faculdade. Vai se formar engenheiro, se Deus quiser.
Viro o restinho da cerveja, me levanto, tiro o 38 do bolso e aponto para sua testa, nunca perco uma encomenda.
Antes de atirar, faço uma reverência:
– Desculpa, Zé. Também preciso sobreviver.