Às vezes, acordo com um surto de nostalgia. Sensação indefinida, talvez por ter me tornado adulto sem um acerto de contas com a juventude. A memória é quem cria (ou filtra) as lembranças, mas algumas delas escapam do “script” da chamada “época boa”, de paraíso perdido num tempo mágico e trazem a amargura de jogadas infelizes, de frustrações, de atos em que preponderaram o medo e a timidez, desejos que ficaram pelo caminho, pequenas coisas que até hoje estão aninhadas no inconsciente. Essas lembranças indefinidas infiltram-se na fronteira entre o despertar e os restos de sonho. Machucam, desalentam.
Sim, viver – principalmente quando viramos a “cabo da boa esperança” – é aumentar o volume de lembranças de nosso embornal. E queiramos ou não, tais lembranças uma hora escapam pelas frestas de nossa couraça. O tempo é hoje, é o presente, dizem; mas o passado, tudo o que fomos e fizemos, fica ecoando, encravado na aura que nos cerca.
A criança é o pai do homem, reflete Machado de Assis. E me pergunto quanto das frustrações da criança e do jovem (medo, vergonha, timidez, sensação de exclusão) não estarão na base do comportamento do adulto.
As boas lembranças explodem nos encontros com velhos amigos: as distâncias, sem carros, eram maiores, mas não inacessíveis à nossa curiosidade exploratória; nossas casas eram o mar e o morro, este com as trilhas entre árvores, os lanhos de capim-serra (ali todos éramos Tarzan, agarrados em cipós); cinema nos fins de semana não era simples distração, fazia parte de nossa vida. Brigas e reconciliações, primeiras bebedeiras, peladas em campo de terra, revistas de sexo clandestinas, agarro às gurias no escurinho.
Os amigos de juventude, costumo enquadrá-los em três categorias. Os que permanecem em contato, mesmo esporadicamente, descontados os que já se foram; os que sumiram de vez, nunca mais se soube de seu destino e de suas vidas; os provisórios, aqueles que chegaram de fora, conviveram conosco por breve tempo e se apagaram, quase sumidos da memória. Hoje, até aqueles com quem vivíamos às turras são amigos de infância. O que nos aproxima é o tempo.
Mas, como se deduz lá da introdução, falo aqui da “banda podre” das lembranças, que nos traem, que teimam em ter seu lugar dentro de nós. As que desejamos escondidas. As que nunca mencionamos, mas que saltam para fora de seu escaninho, indesejáveis, quando estamos desprevenidos. São essas que me acometem no limiar dos sonhos.
(Texto publicado no jornal A Gazeta de SBS em 19.01.2019)