Um dos prazeres infantis era pisar na lama fazendo-a entrar pelos vãos dos dedos na nobreza de ser menino e não temer a vida. Era a ida à padaria ou ao mercado ou ao aviário em dias de chuva que dava a oportunidade de deleitar a lama e seus sons. O chinelo de dedo que começava nos pés, invariavelmente terminava em uma das mãos, dando liberdade ao pisar. O menino nem sonhava ainda ser escritor, mas vislumbrava uma carreira como jogador de futebol ou professor ou presidente do Brasil. Sim, aos dez anos já pensava em ser presidente do Brasil e permitir que seu vizinho tivesse o que comer e sonhos pra sonhar.
Seria um presidente de andar no meio do povo, de receber abraços e distribuir sorrisos, porque tinha tanto bem no coração que o mal – e o mau – se dissolveriam num mandato humano e realizador. Seu desejo de presidente, coincidentemente nasceu com o Partido dos Trabalhadores, no dia de seu aniversário, 10 de fevereiro, que ele só foi saber muito tempo depois.
Os anos 80 tinham essa aura de se estar vivendo grandes momentos sem, muitas vezes, ter noção de que se fazia parte. Vieram as Diretas Já, uma morte mal contada, um presidente impedido, até que um homem vindo do povo, com sotaque nordestino e muita luta nas costas, chegou à presidência. Em uma época em que o menino já não sonhava mais com isso, sequer com qualquer cargo político, sempre lhe faltou estômago para os joguetes infames e governamentais.
O povo estava no Poder e o Socialismo infiltrava suas asas onde o Capitalismo permitia, e vieram anos prósperos que colocaram o país em destaque econômico e social. Parecia que não havia mais volta, que se caminhava para um futuro melhor, com mais oportunidades, em que o seu vizinho poderia almoçar e jantar e sonhar.
Não foi assim.
O ano é 2019 e o retrocesso nas conquistas sociais chega como a lama de uma barragem rompida. Os representantes políticos escolhidos por nós, que outrora saudamos a liberdade, deixam suas máscaras escorrerem pelo rosto com a chuva e a avalanche das revelações. Seus pontos de vista são distantes do ponto de vista de quem precisa do Estado para ter uma vida, ao menos, digna. Mas se continua sonhando com riquezas e vidas abastadas, mesmo diante de tanta prova de que a maioria no mundo vai morrer pobre e com dívidas, sustentados por um fio de esperança até o último suspiro, ingênuo e triste.
(Crônica publicada em 01/02/19, no jornal A Notícia)