Quase meia-noite. Um silêncio cobria as ruas e o casario. Rosalinda empunhou a machadinha e se dirigiu, rígida, uma saliva pegajosa nos lábios frios, ao quarto onde o marido dormia. Quando levantou a machadinha para o golpe fatal, notou algo estranho no rosto de Arnaldo. Estava pálido, inerte, e não se percebia nenhuma respiração. Incrédula, abaixou a machadinha, o destino lavrara em seu favor, depositou-a no canto, e achegou-se à cama. O desgraçado estava morto. Com um espelhinho de bolso do próprio Arnaldo, testou se ainda respirava. Nada. Apertou o pulso, nada. Suspendeu a mão e a soltou. Caiu como um abacate podre. O filho de uma mãe sequer lhe dera o prazer de espatifar-lhe os miolos! “Pelo menos, me poupou trabalho” – confortou-se, levando a machadinha de volta, com certo brilho de satisfação estampado no rosto enrugado.
O relógio antigo, herança de sua avó, badalou meia-noite. Ao mesmo tempo, uma ideia brilhou em sua mente. Não enterraria o miserável com os dentes de ouro. Foi ao quartinho dos fundos, onde o finado guardava os instrumentos de trabalho, pegou um alicate de cortar arames e pedras, retornou ao quarto. Abriu a boca de Arnaldo com a mão esquerda e com a direita arrancou um por um os dentes de ouro. O sangue tingiu a boca e o pescoço do finado. Em seguida, ela atochou a boca ensanguentada com algodão, limpando as manchas nas faces e no pescoço. Depois foi à pia da cozinha, lavou os dentes cuidadosamente com álcool, esfregando. Quanto valeriam? Embrulhou-os, após secá-los, num saquinho de pano, e sentou-se à mesa, pacientemente.
Esperou o dia amanhecer. De vez em quando, espiava o morto. Estava sempre do mesmo jeito. O dia amanheceu. Ouviu galos cantando, passarinhos chilreando, a rua tomando vida. Ela tomou banho quente, demorado, vestiu a melhor roupa e saiu em direção da joalheria. “Algum lucro ainda terei” – pensava, caminhando rapidamente. “É o mínimo que o canalha pode me compensar.” As ruas já estavam movimentadas. Carros e ônibus emitiam sons abafados. De manhã, o calor já chegava aos 30 graus. O asfalto já dava sinais de aquecimento.
Na joalheria, a primeira cliente. Após discutir valores, fechou o negócio e saiu apressada. “Com dinheiro na bolsa, qualquer pessoa se sente mais confiante” – sorriu, embora a noite insone transparecesse nas grossas rugas. Havia outra preocupação. Caminhava a passos largos. Chegara o momento de avisar os vizinhos, os parentes, e preparar o enterro. “Um pouco de lágrimas faz bem", pensou. Estava cansada.
Entrou sorrateiramente. Não queria que nenhuma vizinha visse. Rápida, como uma ladra. Abriu a porta. Deparou com o Arnaldo tropeçando pelas cadeiras e mesas, com a boca ensanguentada, fantasma de outro mundo, gemendo, horrorizado, ao mesmo tempo em que dizia aos brados:
– Oh, meu Deus!, onde estão meus dentes?! O que aconteceu comigo?