– Vai embora! – Eu falei, furioso. Pegue seus trapinhos e desapareça.
Ela me encarava com os olhinhos faiscantes, brilho de ódio; saiu do quarto, atravessou a sala e disse friamente: Você não vai mais me ver na sua frente. Depois abriu a porta da sacadinha do prédio e se jogou lá para baixo. Estávamos no décimo andar.
Desorientado, procurei os sapatos debaixo da cama, joguei uma camisa sobre os ombros e corri para o elevador. Minha cabeça fervia. Meu Deus, que não acontecesse o que eu estava imaginando. O elevador estava ainda parado no segundo andar. Inconscientemente eu desejava que não chegasse nunca, que me poupasse de assistir ao final daquilo que sabia ser inevitável. Quem escaparia de uma queda do décimo andar?
O elevador chegou com seu zunido leve, como um voo de besouro, parou suavemente, e desceram dois jovens. Toquei para baixo. Na calçada estavam umas duas ou três pessoas, diante delas o corpo em decúbito lateral, a saia verde erguida até a cintura, os belos pezinhos descalços, um riozinho de sangue ainda quente brotando dos lábios. Morta.
Quando a conheci, me apaixonei pela sua beleza um tanto passada, madura, carnes soltas numa saia plissada. Cabelos de um louro esmaecido, com mechas mais escuras, esparramados pelos ombros. Os olhos graúdos, velados pelas sobrancelhas espessas, passeavam com um jeito curioso e sofrido pelas feições dos interlocutores. Mas a boca, a boca vermelha era um vórtice que atraia e tragava os lábios e a alma incautos. Nua, era excitante a pele clarinha, cintura com pequena adiposidade, as pernas coladas umas às outras, porejando suor.
Com meus quase 60 anos, essa conquista tinha o seu preço. Mas suas exigências não eram onerosas, e eu também não era nenhum ingênuo, tinha imposto um limite. Os encontros em meu apartamento, num condomínio de luxo, jantares em bons restaurantes, fins de semana em Camboriú, tudo isso a deixava excitada, e a bem dizer, a princípio embasbacada.
Em alguns meses, a levei para morar comigo. Tinha vindo do interior, onde deixara a mãe e um filho menor, criado pela avó. Não falava de sua vida anterior, sua vida começara aqui, e dizia isso com uma sombra triste nos olhos, como se quisesse afastar uma lembrança que a incomodava.
Eu a vestia nas melhores butiques, comprei-lhe um Honda prateado, no qual rondava longamente pela cidade, por trás de grandes óculos escuros. Logico, eu não aprovava isso, preferia tê-la em casa, me esperando de banho tomado, perfumada, cubinhos de gelo prontos para o uísque. Tirava os óculos de sobre a testa, mordia furiosamente uma das hastes, me encarava com olhar ao mesmo tempo zombeteiro e raivoso: Você não é meu dono!
Sim, eu a amava, não nego que tinha medo de perdê-la, de que esse seus volteios pela cidade tivessem alguma intenção oculta, era uma mulher ainda jovem, sensual.
Se antes recebia meus presentes com um brilho nos olhos, me enlaçava o pescoço e lambuzava meus lábios com seus beijos, agora os recebia friamente, como tributo de um servo para sua rainha. Demorava cada vez mais em seus passeios de carro, à tarde. Quando, por acaso, peguei o smartphone que havia lhe dado, reagiu como uma gata parida quando se aproximam de seus filhotes.
Fui muitas vezes chamado para depor no distrito policial, dei minha versão de sua morte, encerraram o caso e deixaram de me incomodar. Hoje sinto dolorosamente sua falta, doei suas roupas, procuro enterrar as lembranças de seu corpo, seus olhos, sua boca feito fruta se abrindo de madura.
Minha vida parou, muitas vezes minha cabeça gira, o coração dispara, sinto que não conseguirei me erguer de baixo dos destroços de minha alma. Ela abriu a porta da sacada e se jogou do décimo andar... Preciso repetir isso mil vezes para sufocar a terrível verdade: eu é que a empurrei para a morte.