Fiquei eufórico. Ninguém acreditou. O cara – o gênio Ramon Gonzales – não dava entrevista. Há anos se recolhera na fazenda que herdara de seus pais e, quanto mais recluso, mais famoso ficava. Não respondia cartas, não atendia telefone, não se deixava fotografar, não abria a porta para ninguém. Daí, minha euforia quando recebi o bilhete dizendo que me receberia.
“Você me pede explicações sobre o que escrevo”, ele disse naquela noite, sentado no varandão, enquanto o céu cheio de estrelas piscava. “Deve estar curioso. Talvez minha mulher, que está acamada, saiba dizer. Sou um mexedor de palavras, vírgulas, pontos e vírgulas, travessões. Eu não vivo. Acordo cedo, de madrugada. O que tenho pela frente? Olho pra fora. E penso numa frase. Qualquer uma. Depois, espero pelo café: a frase na cabeça. Saboreio o café com leite e pãezinhos. Em seguida vou à biblioteca. E começo meu ofício. Retorço a frase pelo avesso. Reviro novamente. Depois me levanto, espio pela janela. Olho o nada. Volto a me sentar, reviro a frase pelo avesso, liquido o verbo, assassino os adjetivos. Abro o dicionário e procuro as palavras estranhas. Copio-as. Se uso o computador? Ah, não. Tudo à mão antes de datilografar na Olivette que ganhei do meu pai quando jovem. Estudo as palavras, separo as sílabas, coloco-as na frase. Fico trocando-as de lugar. Pra frente. Pra trás. Até chegar a hora do almoço.”
O que gosta de almoçar? Comida leve? Orgânica?
“Qualquer coisa. Tenho estômago de lagarto rajado. O que me importa é a frase. Preciso dar vida a ela. Frase revirada e palavras desconexas. Soneca? Ah, sim, por meia hora. Depois volto à biblioteca. Lá está a frase judiada, amassada, desamparada. Começo de novo, revirando-a pelo avesso do avesso. Então, deixo-a na dormência. E saio pelo quintal. Para ver o campo? Para ver o pomar? Nada disso. Estou à procura de outra frase. Quando a tenho, volto à biblioteca, cansado, esgotado, como se tivesse percorrido vales e montanhas, e começo tudo de novo. Reviro a frase pelo avesso à procura do sentido inexistente. Quando não gosto, enfarado ou desesperado, jogo-as fora. Vazio, completamente vazio, me deito no sofá e fico olhando o teto, à procura de outra frase. Dias, semanas, meses. Sem domingos e feriados.”
Foi assim que escreveu O grande labirinto, o calhamaço de quinhentas páginas?
“Sim, foi. Mais de trinta anos procurando frase e revirando-as.”
Sua obra-prima. Não há nada semelhante até hoje. Confesso que li quatro vezes. Há algo lá que ainda não percebi... A crítica te trata como um deus.
“Ah, é o que dizem. Esses críticos vivem cavoucando sentidos nas frases reviradas. Cada qual vê alguma coisa. São uns tolos. Eu só vejo o labirinto de frases no avesso. Essa gente, os críticos, procura o nada e, não encontrando, dão asas às suas pobres imaginações. Eles gostam de frases retorcidas, palavras desconexas, da inexistência.”
O que diz de seus prêmios? O grande labirinto é premiado no mundo todo.
“Gosto deles quando me dão dinheiro. Do resto, uma farsa. Estão premiando o quê? Frases no avesso. Uns bobalhões.“
Quantos não gostariam de estar no seu lugar...
“Isso é ilusão. Eu não vivo. Cansei da fama. Literatura é vida. Quando a literatura se tona excessivamente hermética, já não existe mais a arte, mas a curiosidade sobre o artista. Por isso, você está aqui. Sou um ícone. Estou cansado de Semiótica, Linguística, Estética, Estilística... Com os diabos! Isso é lixo. Mas não posso dizer o que penso. Fico imaginando o que essa gente sabida quer dizer. Para mim, nada dizem. Enquanto isso, eu me comporto como um cadáver. No grande labirinto, não há vida. Não há enredo, não há personagens, não há espaço, não há coisa alguma. Só quinhentas páginas de frases e palavras reviradas. Só o vazio... Acredite: a minha obra-prima não passa de um dicionário em desordem.”
O vazio – o dilema do homem moderno. Por isso teu livro é grande.
“Pode ser. Mas isso não é vida. É um inferno. Ah, rapaz, tenho tanta inveja da vida pulsando, da natureza estalando com vigor! Queria, todos os dias, ver a ciranda do sol nascente. Mas não: fico revirando frases pelo avesso, colocando o dicionário em desordem e um monte de críticos achando que sou um gênio.”
Mas você é um gênio.
Fez-se um longo silêncio. Estava visivelmente cansado. Acabara a entrevista. Desliguei o gravadorzinho.
“Eu te imploro. Não publique esta confissão. Só minha mulher, que está acamada, e você sabem deste segredo. Fica tudo entre nós.”