terça-feira, 11 de junho de 2019

"Boa noite, Cinderela" David Gonçalves

Vou avisando: não é conto de fadas. Poderia ser, mas não é. Solidão, sim: soda que derrete aço. Se diz que Deus criou o homem, que se achou tão-só, então deu-lhe uma companheira para se consolar.
Absolutamente só, sentia-se Ricardo. Descasara-se há seis meses e a casa alugada, sem mulher e os dois filhos pequenos, parecia-lhe um cemitério, tão fria e vazia. Trabalhava até à exaustão na pequena empresa. Depois que os poucos funcionários se iam, ele continuava. Ocupava a mente desolada.
Naquela noite, sexta-feira, não tinha vontade de retornar à casa vazia. Ansiava por pessoas. Procurou por botecos, restaurantes, lanchonetes. Escolheu o bar mais movimentado. Uma dose de uísque. Música alta. Sertanejas e boleros. Canções magoadas. Risos. Fumaça. Luzes. Alegria fervilhando. Rodeado de pessoas e só. Se procuras a solidão, pensou, anda no meio dos homens. Todo casamento desfeito deixa marcas que não cicatrizam. Leite derramado. Tocar adiante. A vida segue – consolou-se. Tudo se acaba. Até mesmo o amor. Vinho que vira vinagre. O solitário tem a própria sombra como companheira.
– Será que o amor é um pássaro que põe ovos de ferro?
No balcão, duas mulheres o espiavam, conversando e bebendo.
O amor é eterno; a gente é que vai mudando, até ficar um estranho distante, confabulou.
– Garçom! Outro uísque. Três pedras de gelo.
Rodou as pedras de gelo com o dedo. Por onde andaria sua ex-mulher? Estaria feliz nos braços de outro? Diabo de amor. Era como o sarampo: cada qual tem que passar por ele. Mais este uísque e vou embora. Essa barulheira infernal não é pra mim. Sou um tolo.
As duas mulheres – uma loira, outra morena, atraentes, conversavam, fumavam, bebiam e o espiavam.
Cedo ou tarde, o amor é o seu próprio vingador algoz. Por que as pessoas que se amam, um dia, se dão de se magoarem, enraivecidas, por uma palha voando? De começo, o paraíso. Depois, o inferno.
Então, uma das mulheres, a loira, toda sorridente, sentou-se à mesa. Vejo que você está tão-só, disse, revirando os olhos, que não suportei a tua quietude. Espantou-se. Ah, estava conversando comigo mesmo. Se estou atrapalhando... Não, pode ficar, estou precisando de companhia. Parece tão triste, ela disse. Ah, não, só aparência. Estou neste bar pela primeira vez. É casado? Divorciado. Faz tempo? Quase um ano. Quer uma bebida? Lorena, prazer, estendeu a mão bela, unhas bem cuidadas. Aceito, sim. Cerveja. Uísque é muito forte. Conversaram. Não era de Quadrínculo. Estava de passagem. Uma visita aos tios. Podia chamar a amiga pra sentar-se à mesa? Aquela lá, a morena. Estamos juntas. Ela está feito cachorro caído de mudança. Mas é claro, pode chamá-la. Esta é a Margarida. Jovem, elegante. Animadíssima. Duas jovens graciosas, corpos quentes e perfumados. Há pouco, só, roendo as traças do tempo. Agora, com duas mulheres encantadoras. Conversavam, riam, anedotavam. Ricardo sentia-se uma planta no deserto depois das primeiras chuvas.
– Vou ao banheiro – disse. – Não me abandonem. Garçom, mais bebidas.
Voltou decidido. Convidaria as duas para a sua casa vazia. Qual delas? A loira ou a morena? Qualquer uma. Antes, beberam, brindaram. Pra casa, então. Elas toparam, um pouco resistentes. Ricardo já se achava zonzo. Bebera demais. Mas dirigiu o carro cuidadosamente, estacionou na garagem. Suava. O calor, na madrugada, sufocava-o.
– Entrem e sejam bem-vindas. Se acheguem. A casa é de vocês – e sentou-se no sofá pesadamente, zonzo, suando, enquanto a morena o abraçava e beijava.
De repente, tudo se apagou e foi envolvido por um sono profundo. Acordou manhã alta. Casa revirada: gavetas, cômodas, armários, guarda-roupas, criados-mudos. Cadê a carteira? Jogada no soalho, sem documentos e os cartões de crédito. Estava espantado e zonzo. Na parede, uma delas escrevera: Boa noite, Cinderela.
Mais do que depressa, verificou o saldo bancário. Mais de mil haviam sumido. Tudo zerado. Idiota, pensou. Estava com vergonha até de registrar o roubo.