quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Voo de galinha - David Gonçalves

Fazia um calor capaz de chocar ovos. No teto da sala de aula, dois ventiladores roncavam e o vento que batia em nossas cabeças era quente, asfixiante. O professor Virgílio discursava; nossas mentes juvenis divagavam, modorrando. A gente não via a hora de botar os pés nas ruas, mas, lá fora, o asfalto derretia feito manteiga.
– Vocês têm que sonhar alto, meninos. Têm que ter brilho nos olhos. Não podem deixar a bola de fogo se apagar.
Do que ele estava falando? Olhei pro Sebinho – quase roncava, o suor escorrendo na testa cheia de sardas. Olhei pro Tarzã – parecia um espantalho magro no meio do arrozal, na tarde calorenta. Olhei pro Catapora – ele olhava janela afora, ausente. Será que eles haviam esquecido do jogo de futebol depois das aulas? Trato era trato: que ninguém mijasse fora do penico.
– Sêneca, na época de Cristo, já dizia: “Mais importante não é o lugar, mas o estado de ânimo, pois o ânimo não se torna escravo de nenhum lugar”. É preciso ter coragem pra enfrentar as dificuldades e, aos poucos, por mérito, ir alçando voos brilhantes, que estão à nossa espera.
Tomou fôlego, enxugou o suor da testa com as costas das mãos sujas de giz.
– Estou suando até no reguinho da bunda – cochichou, rindo, o Catapora, e as marcas de catapora no rosto pareciam rosas secas rasgadas.
O professor estava com o guarda-pó e a camisa totalmente molhados.
– A escolha, eis a questão. Qual o voo que você vai escolher? É preciso ter ambição na vida, não se contentar com a miséria que nos rodeia. Então, qual o voo? O voo de galinha?
Pensei nas galinhas que minha mãe criava. Pra vinte galinhas, um galo, dizia o pai. Senão é briga na certa. Voo de galinha é curto, raso, sem futuro – dizia o professor. Pensei no cachorro malhado tentando pegá-las no quintal e elas, assustadas, esvoaçando e cocoricando. A mãe ralhando com o cachorro: seu peste, cão imundo, deixe as pobrezinhas em paz.
Às vezes, o barulho das hélices dos ventiladores cobria a voz do professor e a gente só via o movimento de seus lábios e as mãos abanando como se movimentassem o ar abafado. O burburinho das outras salas chegava abafado e, numa delas, os alunos cantavam o hino da Bandeira, desafinados. Você vai? – falei aos sussurros. Fez que não ouviu. No futebol. Ora, se vou!, respondeu quase inaudível o Sebinho. Vamos dar uma sova naqueles metidos. Assim que se fala, sussurrei, satisfeito. Será que os gêmeos também vão? Se eles forem, estamos perdidos. Com a bola nos pés, são capetas. Eu cuido deles, disse Sebinho.
– Vocês têm que optar pelo voo da águia. Voo alto, longo, atento, sobre as montanhas. Por isso, têm que estudar, buscar o conhecimento, sair do mundo da ignorância, e ter vontade de progredir, ou terão que se contentar com o voo da galinha, sem perspectiva alguma, escravos de governos corruptos e de religiões dinheiristas. Quadrínculo está cheia de gente assim; nas casas, nas ruas, nos bares. Mocidade bêbada e drogada, roubando e matando, que se contenta com a mediocridade.
Olhei através das janelas. O ar quente tremulava sobre o casario; as folhas das árvores pareciam mortas. Nenhum pássaro, nenhum sinal de vida. O rom-rom-rom dos ventiladores ameaçava cair sobre nossas cabeças e decepá-las.
– O destino está nas mãos de vocês. Voo de galinha ou de águia? Viver por viver, se arrastando, à espera da sorte ou uma vida plena de realizações?
Limpou o suor porejando no rosto e, novamente, manchas brancas do giz tingiram a pele. Falava pra quem? Revi o cachorro malhado correndo atrás das galinhas do quintal e a mãe, um tanto gorda, xingando-o.
– David, o que você prefere?
Me encolhi, assustado.
– O que, professor?
Toda a turma riu, como acordando no meio do mormaço. Eu comecei a suar frio. Tinha que responder. Me lembrei do cachorro perseguindo as galinhas. Era até bonito vê-las esvoaçando, desesperadas.
– Voo de galinha – respondi.
O professor quedou-se, aborrecido. Neste instante, bateu o sinal, todo mundo se levantou abruptamente, como se tivesse molas nos pés. Ufa! Fim de aula. O professor, entristecido, me olhava pesaroso. Pobre América Latina – grunhiu. Passei por ele e pela porta como rojão, sedento pelo racha no campo de terra.