– Tem um homem no portão. Quer falar com você.
Fechei o livro. Diz que não estou. Estou lendo. Preparo as provas finais. Já disse que você está. Santa paciência, mulher, vá lá e diz que se enganou. Vou nada, ela diz, irritada. De má vontade, vou atender.
– O que é?
O moço, magro e alto, intimidado:
– Sr. David, o escritor?
Não gosto que venham ao portão. Sou retraído e casmurro. Essa gente confunde o autor com as personagens.
– Sou filho da Marinalva...
Marinalva? Busquei-a na memória. Fiquei olhando o rapaz. Não me parecia estranho. Aquele olhar tímido, mas vivo. Parecia sonhar com campos orvalhados. O jeito de mover os braços, esfregar as mãos. a cor de sela usada.
– Ela trabalhou, há anos, na república de estudantes.
Ah, Deus, balbuciei um gemido de espanto. Quase vinte anos. Tempos difíceis.
– A Marimbondo! Ela está bem? Por onde ela anda?
Me entregou um bilhete amassado e amarelado. “Procure por David, o escritor. Ele mora em Quadrínculo. Diz que eu trabalhei na república de estudantes.”
Olhava o moço estranho com receio. Os fatos se sucediam na memória, como se a tampa do túnel do tempo tivesse sido estourada.
Éramos em cinco estudantes esfomeados. Pé de cana, o mais velho, estudava Direito. Josias, o Grão de bico, Engenharia. Terêncio, o Bafo de bode, Sociologia. Nicolau, Touro brabo, Medicina. Eu, David, Literatura. A casa, alugada por preço baixo, estava aos pedaços. A gente bebia mais do que comia. Móveis em cacarecos e muita sujeira. Ratos passeavam pelos cantos até durante o dia. Pouco dinheiro e muitas bebedeiras, e prosas, e sonhos, e comícios contra a sociedade.
Então, certo dia, bateu à porta aquela mulher, ainda jovem, pedindo emprego. Bem, eu disse, onde comem cinco, bebem seis, e a recolhemos. Estava suja, judiada, magra, olhos cansados. Aqui tem que trabalhar – disseram. Naquela noite, só havia pão com mortadela e o garrafão de cachaça já pelo meio.
Ressacados, no outro dia, vimos, surpresos, uma criaturinha esguia, viva, bonita, cheia de coragem, limpando a casa, dando ordens: se vocês querem uma casa decente, tem que comprar vassouras, rodos, sabão, esponja. De tarde, Bafo de bode apareceu com os produtos exigidos. Assim está bom, disse ela. Vocês vivem de vento? As prateleiras estão vazias. Touro brabo saiu correndo até a mercearia, onde comprou feijão, arroz e carne seca fiado. Em poucos dias, ela colocou a casa em ordem. Não parava quieta. Parecia abelha zunindo. Não, eu disse, marimbondo. Voava daqui, de lá. Ria, cantava, assobiava. De repente, sem a gente perceber, ela tinha dominado a todos. Sem escrúpulos, bebia e participava de nossos porres. A gente estava caidinho por ela. Mas Bafo de bode deu o começo. Sábado e domingo, ele a levava para passear e dormia com ela. A gente fingia que nada sabia. Depois, um por um, fomos acolhidos em sua cama. Ela dividia bem os dias da semana. Bafo de bode confessou que pretendia casar-se com ela. Rimos adoidados. Caia fora, ela é de todo mundo. Ele ficou enraivecido. Ela está grávida, o filho é meu – confessou. Rimos mais ainda. Cara, eu disse, o filho é nosso. Temos que cuidar dele. Cada um fez o que podia para cuidar da gravidez e dos desejos dela. Mas o rebento nasceu morto. Foi uma tristeza só. Daqui pra diante, todo mundo tem que usar preservativos – ordenou Touro brabo. Assim, foi feito e se passaram três anos. Marimbondo já fazia parte de nossas vidas. Mas os estudos estavam no fim. Cada um pegaria o seu rumo. A república ia ser desfeita. Pra onde eu vou? Vocês são minha vida – chorava copiosamente. Há outras casas, Marimbondo. Você vai se dar bem, eu disse. Chorou mais ainda. Na última noite, restavam eu e ela. Bebemos muito e dormimos juntos, como amantes apaixonados, sem preservativo algum. Depois, nunca mais a vi...
Ali estava o filho dela. Me olhava estranhamente. Filho de quem? De Touro brabo, de Bafo de bode, de Grão de bico, de Pé de cana? Seria meu filho?
– Como se chama?
– David – respondeu, timidamente.
Fiquei branco como cera. As pernas tremeram, a voz não saiu, o chão fugiu.