A boca estava seca como se tivesse engolido um punhado de areia. Engolia o cuspe seco que não descia na goela. As mãos, Deus, estavam geladas como as mãos de afogados. Ela segurava o pote de cinzas. Estava no meio do mulherio que exalava perfume variado e barato, exibindo seios, pernas e bundas sob os olhos gulosos dos homens já um tanto bêbedos. Teria coragem de levar a missão ao fim?
Na infância, Monteiro – o caçula de uma boa ninhada de filhos, descendente de italianos – foi mandado ao seminário. Cumpria, assim, os desejos da mãe. O pai apenas fazia filhos para ter braços na roça. Ninguém perguntou-lhe se queria ser padre. Mas cumpriu-se o veredicto. Rolou de paróquia a paróquia, abençoando, perdoando, aconselhando, punindo. Sobretudo, amando. Primeiro, as putas dos decaídos bordéis. Depois, algumas fiéis audaciosas, viúvas e solteironas. Por dentro de uma batina existe um homem com desejos, anseios e decepções. Fez filhos, sim. Umas silenciaram, aflitas; outras, abortaram. Quando rebentava o escândalo, era transferido para arraial distante e tudo começava novamente. Ao completar 50 anos nenhuma paróquia o queria mais. Outros tempos: a chegada brusca da internet o expôs de tal maneira que não havia como a Igreja acobertá-lo. Sim, era um pároco amado, com sermões empolgantes. Atiçava, purificava, unia e multiplicava os fiéis por onde andava. Mas... A internet liquidou com seus arroubos amorosos. Essa coisa do diabo liquidou a distância, dizia. Teve que deixar a batina e sair quieto pelas portas dos fundos.
Foi assim que apareceu em Quadrínculo e montou um bar-mercearia, onde vendia de tudo – de cachaça a cereais. Adotara outro nome. Deixara a barba um tanto grisalha crescer. Tinha boa prosa, sabia escutar e aconselhar. Fez clientela. Não era mais Monteiro, mas Procópio. A fama de comerciante se espalhou e o negócio prosperou. As mulheres, embora maduro, colocavam-no como provável parceiro. Frequentemente, os homens viam-no no meretrício, bebendo, farreando. Empolgado, dizia: “A vida é uma farra, uma farsa, um imenso puteiro legalizado”.
Certo dia, quando estava para fechar o estabelecimento, uma mulher de trinta anos encostou-se no balcão e estendeu-lhe um envelope. Dentro, uma carta. Leu-a pensativamente:
“Padre Monteiro, apresento nossa filha Luíza. Estou à beira da morte e ela sempre quis saber quem era o pai. Escondi de todos a verdade. Cuide bem dela” – Joana Valverde.
Ele sacudiu a cabeça como se tivesse levado uma pancada. Depois, mirou-a. A lembrança – tão antiga foi aos poucos se avivando – escapava da inconsistência de um simples sonho.
– Você se parece com a Joana – disse, ruborizando-se. – Por onde ela anda?
– No cemitério.
– Ah, sim. Entre. A casa é sua. Não repare. Casa de homem é assim...
Abraçou-a e chorou. Conversaram a noite toda.
– Você pode morar aqui.
Ela não quis.
– Só queria conhecer meu pai. Isto basta.
Mas voltou muitas vezes.
Na última visita, encontrou o pai abatido, com dores, andando com dificuldade pelo armazém. Algo terrível acontecera. Câncer na próstata, ele disse. É o fim, completou.
– Estava mesmo esperando você. Toma aqui esta carta com meu último desejo. Mas só abra depois da cremação.
– Que absurdo, pai! O que o médico diz? Amanhã, vou falar com ele.
– Estou no corredor da morte.
Ambos choraram, abraçados.
– Me perdoe, filha, por eu não ter sido bom pai.
Três semanas após, morreu.
Quando abriu o envelope, surpresa, ela leu: “Espalhe minhas cinzas num puteiro”. Lá estava ela, no meio do mulherio exalando a perfumes baratos e homens bêbados para cumprir o último desejo do pai. Segurava tremulamente o pote de cinzas. Por onde começar a espalhar? Algumas mulheres já a olhavam como inimiga. Um senhorzinho de cabelos brancos a puxou para dançar um tango sob o tablado. Ela o empurrou e, no esforço, quase derrubou o pote.