Bela, belíssima, cabelos negros da noite, azeviche, olhos de jabuticaba – Esmeralda, a filha do agricultor Leonardo. Riso tão puro como a fonte murmurante. Dos cinco filhos, era a joia. Dava-lhe alegrias e apreensões. Os moços da gleba a disputavam acirradamente. Nos bailes e quermesses, as outras moças mofavam, magoadas. Esmeralda ofuscava e atraía, feito visgo. Alguns, desprezados, desertaram chapadão afora e teve o caso do Alonso que se enforcou numa goiabeira naquela curva de estrada.
A casa de Leonardo era frequentada por muitos jovens. Alguns se contentavam com uma caneca de água da bica que ela oferecia. Outros, com o simples olhar da desejada.
Tão linda, deusa, rosa perfumada, flor de maracujá.
Dois moços a disputavam, sem tréguas, desesperados. Amor cego. Ambos de bom porte e ricos, filhos de fazendeiros abastados. Ela decidiu por Antonio. O casamento foi marcado para o dia de Natal. Abílio, o desprezado, não se conformou: jurou vingança. Alguma coisa tinha que fazer. Não serviria de riso.
Houve festa, bênçãos do pároco, chuva de arroz e buquê de flores silvestres para as ansiosas solteiras. Os convidados chegavam de caminhonetes, carros e até mesmo de carroças, ou em cavalos de raça. Paz e alegria pairavam sobre os convivas. Os noivos se vestiram de papai Noel e mamãe Noel e distribuíam doces às crianças.
Mas o ciúme é soda cáustica. Derrete até aço e derreteu a mente de Abílio. O ciúme por si é o diabo; junto com o álcool, é o inferno inteiro.
De repente, quando o banquete era servido, uma caminhonete parou bruscamente na frente do salão de festa e, envolto no poeirão vermelho, surgiu Abílio empunhando dois revólveres. Estava possesso, ébrio de ciúmes.
Houve um corre-corre e pessoas caídas. Os noivos se esconderam debaixo da mesa de peroba, que ficou esburacada de tantos estilhaços.
Antes que alguém buscasse suas armas nos carros, Abílio já havia desaparecido, deixando atrás uma nuvem de poeira, várias pessoas feridas e três mortos: o pai da noiva, a mãe da noiva e o padre.
Passaram-se 15 anos. O tempo foi cicatrizando as mágoas, os receios e o desejo de vingança. Se diz com acerto que o tempo é sabão e borracha: vai lavando e apagando.
Na casa de Antônio e Esmeralda, pais de três filhos já crescidos, nunca mais houve Natal. Reinava a tristeza: um saco de lembranças ruins. Preparavam a ceia farturosa, sentavam-se à mesa, mas não havia alegria. Os mortos pairavam sobre a família, embora procurassem camuflar. Não se fala em corda em casa de enforcado.
Aguardavam as festas, sentados à mesa. Oravam. Lá fora, brilhavam as estrelas. Alguém bateu palmas ao portão, os cachorros ladraram ferozmente.
– Mas logo nesta noite! Será o bom velhinho perdido por esses campos? – disse Antonio, levantando-se e indo atender, ralhando com os cachorros.
Era um andarilho maltrapilho, saco roto às costas. Focou o farolete no rosto sofrido de barba endurecida, ensebada, com ciscos e gravetos enroscados.
– Alguma sobra de comida da ceia, senhor? – disse o andarilho, perdido na noite.
Mas era muito cedo para ter sobras.
– Passe mais tarde, depois da meia-noite. Receberá uma marmita generosa.
O andarilho concordou e saiu aos passos trôpegos. Mas o coração de Antonio se condoeu.
– Ei, espere, venha cear com a minha família. Onde come um, comem dois.
O mendigo o seguiu casa adentro como um cão. Espiava, desconfiado, os móveis, as fotografias na parede. Diante da família, parou indeciso, um tanto trêmulo.
– Sente-se.
Esmeralda, ainda linda, e filhos fitaram Antonio, receosos, sem entender a estranha visita.
– Não temos o costume de fazer festa neste dia – disse Antônio durante a ceia.
– Não precisa dizer nada – acudiu Esmeralda, afetuosa.
– Preciso, sim. Este homem parece ser boa pessoa. Com certeza, já comeu o pão que o diabo amassou por este mundo.
Contou, pesaroso, sobre a tragédia naquele dia de Natal.
O andarilho, de cabeça baixa, fartava-se. Comia como se fosse atravessar o deserto. O mau cheiro de seu corpo e roupas se misturava com o sabor da galinha assada, do leitão recheado e de outras iguarias.
– Hoje, se encontrasse aquele assassino, estenderia a mão. Roubei-lhe o bem mais precioso de sua vida, esta mulher tão bela e afetuosa. Seria capaz de dar-lhe um abraço. Nenhum de nós tem rancor guardado. Se estivesse no seu lugar, não saberia o que fazer. É possível que ele tenha sofrido o seu quinhão também.
– Ah, Antonio, há tempo queria ouvir isso de você!
De cabeça baixa, o mendigo se levantou, hesitante.
– Senhor, proteja esta casa, que nunca falte nada – e foi saindo, acompanhado de Antonio.
– Adeus, senhor. Foi o melhor Natal de minha vida – despediu-se no portão.
Em seguida, a noite o engoliu. Havia lágrimas em seus olhos. Jogou a sacola no mato, onde, no dia seguinte, caçadores acharam um revólver carregado. No cabo havia uma inscrição feita grosseiramente: Abílio.