– Onde já se viu menina nessa idade com tanta opinião?!
– era uma dessas perguntas exclamadas que saía da boca de Horácio,
enquanto olhava para Selena e apontava para Julinha.
– Ora, pai! Sei lá. Eu é que não converso sobre isso com ela. Aprendeu na escola, só pode.
Julinha mantinha uma cara marruda e amarrada que doce de leite condensado nenhum dava jeito.
– Você tem mesmo certeza disso?
– insistiu o avô, ao que a neta pôs-se a desfiar um novelo interminável de argumentos
para dizer que, sim, que tinha certeza e pronto.
– Parece o pai. Que Deus o tenha! – disse Selena, e viu os olhos da filha brilharem porque
parecer o pai na teimosia era orgulho além da conta para aquela guria de 12 anos.
Para Horácio, discussão tinha o limite de uma pontada do lado da cabeça.
Era sentir e saber que não devia continuar. Melhor pegar um livro de poemas,
de um português arcaico, que servia mais para saborear ritmo do que entender conteúdo.
Algumas palavras estão carregadas de silêncio, e são preciosas.
– Você devia ouvir mais o vovô, filha. Ele tem experiência.
– Mãe, o vô vive no país das maravilhas, tu ouviu o que ele falou?
Tu ouviu o que ele disse do muro?
Julinha gesticulava com suas mãos pequenas de tal jeito que parecia desenhar no ar cada palavra,
e quanto mais queria convencer mais espaço tomava com o corpo a bruxulear ideia.
– Quando o pai construiu o muro, disse que ia colocar cerca elétrica e câmera pra dar segurança.
Mas tu viu, ele morreu antes, foi morto, mãe!
E o vô vem com esse discurso de que segurança é uma casa sem muros? Se liga!
– Eu não vou derrubar o muro, Julinha – disse o vô que voltava à sala,
com olhar cansado e poemas à mão –, só defendia uma ideia.
Você está certa, é mais seguro nos cercarmos de muros.
Não são mais tempos para jardins e bons-dias.
Não há mais tempo para salvar o que pode ser morto.
Horácio seguiu em direção ao portão, destravou-o e caminhou até a praça onde amigos jogavam dominó.
Nuvens se aproximaram. Ele deitou-se, abriu a boca e bebeu gotas de chuva.