Sim, Senhor! Uma trabalheira antes de sair de casa, diz Belinha, muito atarefada, gorda, fôlego pesado e entrecortado. Esbarra as pernas pesadas e cheias de varizes nas cadeiras, no sofá, na cama. Dia de receber a aposentadoria. Uma miséria. Tem que ir ao banco, pegar o ônibus, espremer-se entre gente estranha. Já de manhã, ela já começou a se preparar pra ir à rua. Um dia quente. Ah, Deus, tantas dificuldades. Vestir-se, espremer o corpo gordo nos velhos vestidos desconfortáveis, apertar os pés inchados nos sapatos apertados, pentear os cabelos ralos que ela vive tingindo e, a cada dia, perde os fios de cabelo. No cocoruto, a coroinha de frei, que ela tenta esconder. Mas não era só isso. Desconfia dos vizinhos, do porteiro, do carteiro, daquela espelunca de estudantes no andar de cima. Na sua ausência, poderiam roubá-la. Arrombariam o apartamento e surrupiariam roupas de cama, mesa, cadeiras, documentos, as poucas joias. Aqueles estudantes depravados poderiam roubar e desarrumar as coisas, escondê-las, só pra rirem dela.
Havia também os demônios. Divertiam-se com ela. Guardava um objeto num lugar, aparecia em outro. Os demônios, simplesmente, brincavam com ela. Às vezes, via o Saci pulando pelo apartamento, cachimbando e rindo. Nunca encontrava os objetos no mesmo lugar. Na semana passada, guardara a tintura de cabelos junto com a prateleira dos remédios e a encontrara dias depois dentro da geladeira. Guardava as calcinhas numa gaveta e encontrava-as noutro armário, junto com os panos de prato bordados. As coisas viviam se escondendo.
Casara-se três vezes. Enviuvara três vezes. Agora, envelhecida, tinha medo dos homens. Todos queriam roubá-la. O primeiro marido morreu na fazenda, a tiros. Ainda bem que não tinha filhos. Teve que se mudar de fazenda. Jovem e bonita, casou-se novamente. Desta vez, com um comerciante de secos e molhados, viúvo, bem mais velho do que ela. Por Deus, ele cheirava a produtos de prateleiras – banha, sabão, toicinho, linguiças, enxada, foices, martelos, pregos. Não estava em condições de escolher homem melhor. Também não tiveram filhos. Certa noite, encontrou-o enfartado no balcão, em cima do caderno de fiados. Depois do enterro, ela se desfez do armazém. Mudou-se pra Curitiba. Algum tempo depois, foi procurada pelo dono da fazenda onde o primeiro marido fora morto. Casaram-se. Ainda mantinha alguns traços de beleza. Mas ela exigiu um apartamento. Viveram alguns anos juntos. Com as geadas no Norte do Paraná, ele perdeu as fazendas e estourou os miolos. De herança, só o apartamento. Agora, ela tinha medo dos homens. Todos queriam roubá-la ou tê-la como um barranco pra morrer encostado. Vivia da escassa aposentadoria.
Fechou o apartamento olhando se os vizinhos não a espiavam. Já eram duas horas da tarde. O tempo voava. Calorão, ruas movimentadas. Espremer-se no ônibus, proteger-se dos tarados, dos ladrões, dos maconheiros. Chegou ao banco quase no momento de fechar. Não sabia lidar com aquelas máquinas diabólicas. Não confiava nelas. Esperava pelo gerente, moço novo, parecido com o primeiro marido. Uma delícia o ar-condicionado. Por ela, ficaria mais tempo. Horário de fechar.
De novo na rua. Apertava a bolsa contra o peito, com medo de assalto. No ônibus, cada passageiro era um bandido. Perto da sua rua, desceu. Tinha que fazer as compras do mês. Já escurecia. Mas, no supermercado, parecia dia. Movimentava um carrinho com dificuldade. Tudo lhe parecia difícil. Enxergava pouco. Os preços dançavam a sua frente. Os demônios continuavam pregando peças. Pegava um produto, assustava-se com o preço. Quando ia colocá-lo no carrinho, ele já estava lá. Prateleiras altas demais ou baixas demais. Pessoas a empurravam com seus carrinhos cheios. Queria fazer as compras em meia hora, mas já estava lá mais de duas horas. Parecia que todo mundo tinha decidido fazer compras naquele dia. Filas no caixa. Pra entregar? Sim, respondeu. Levaria o leite e o queijo. Poderiam azedar. E saiu.
Estava cansada quando chegou ao apartamento, os pés inchados, o corpo inchado, como se tivesse levado uma surra. Ah, um banho e esparramar-se na cama como rainha. Mas cadê a chave? Tinha a porta, mas não tinha a chave. Mais outra peça dos demônios? Pedir ajuda aos vizinhos? Ao porteiro? Aos estudantes? Não confiava naquela gente. Deixou o leite e o queijo à porta. Sem chave, o que fazer? Os demônios riem de mim, pensou. A quem procurar? Todos eram suspeitos. Já eram dez da noite. Saiu do prédio e caminhou pela rua ainda movimentada. As luzes ofuscavam. Duas quadras adiante, havia uma praça. Ali, no banco, acomodou-se. Ficaria ali até amanhecer. Que mais poderia fazer uma viúva três vezes viúva, sem filhos, sem parentes, sem amigos?
Oh, Deus, não quero mais viver, balbuciava, trêmula. O tumulto das ruas, aos poucos se calava. Um mendigo dormia debaixo de uma árvore, estirado no banco. Bela, Belinha, o que fazer? Conhecia aquela voz. Era a voz do primeiro marido. Quedou-se admirada. Sentara-se ao seu lado. Não tinha envelhecido. Uma lagrima caiu de seus olhos. Depois, outro a interpelou: Bela, minha flor, não tem medo de ladrões. Sirva pra essa gente um pouco de banha. Era o segundo marido. Outra lágrima rolou. Devo ter cochilado, pensou. Isso é hora de ficar na rua? Era o terceiro marido. Mais outra lágrima. Fechou os olhos e ficou tempo assim. Quando os abriu, só havia a quietude da noite alta na rua vazia. Mãezinha, o que faz aqui? Era o porteiro do prédio. Um guarda o havia avisado. Levaram-na. Por que não me disse, mãezinha? Eu tenho a chave-mestra. É pra isso que serve um porteiro. O leite e o queijo haviam sumido. Já estava dentro do apartamento quando alguém bateu à porta. Aqui está o queijo e o leite, mãezinha, disse um dos estudantes. Eu guardei na geladeira pra não azedar. Ela não conseguiu sequer agradecer. Sozinha novamente, vasculhou a bolsa. O dinheiro estava lá. Surpresa, a chave estava lá. Quem a colocara ali novamente?