O menino deitara sujo, com roupa e tudo. Não queria dormir, mas as pálpebras se fechavam, se fechavam. De repente, no silêncio do quartinho escuro e desarrumado, o bzzz dos pernilongos o acordava. Espalmava o ar. Um vagalume ziguezagueou pelo ar abafado, mas o menino não viu. Lembrava, remotamente, das palavras de Tio Zaías: “Fique esperto. Olho vivo. Não é pra dormir. Na hora, você tem que entregar o embrulho.” Mas o sono o tomava por inteiro. De vez em quando, sobressaltava: perdera a hora. Espiava o relógio de ponteiros em cima da mesinha. Não, ainda faltavam alguns minutos. Abruptamente, voltava a dormir e o bzzz dos pernilongos o ninava.
De repente, acordou sobressaltado. Já passava das dez horas da noite. O Tio Zaías ficaria uma fera. Pegou o pacote embrulhado em papel de pão, amarrado com barbante, e saiu à rua, sem blusa. E começou a caminhada na noite.
Lá vai o menino rua afora, noite adentro, segurando debaixo do braço o pacote. Desvia das pessoas, foge dos cães vadios, esquiva-se da polícia, contempla as mulheres da noite, abaixa o boné na cara magra para fugir da luz forte dos faróis. Arrasta os chinelos velhos. “O que o tio vai me dar?” O tio o mira de alto a baixo, fumando. Tem os olhos vermelhos. “Um par de tênis.”. Novo? “Novínho em folha”, diz o tio. “Mas você tem que entregar o embrulho. Se chegar lá, no barracão, e não encontrar ninguém, se aquiete num canto, já deixei por lá um cobertozinho. Se enrole nele e fique na espreita, entendeu?” Sim, tinha entendido. O que tinha no embrulho? “Não é da sua conta”, respondeu Tio Zaías. “Faça o que eu mando. Não fique cutucando caixa de marimbondos.” Está bem”, concordou. Tio Zaías era como pai. Dava-lhe pão adormecido e deixava-o dormir no quartinho desarranjado e sujo. De dia, ele se virava pelas ruas da cidade. De noite, todo passarinho precisava ter seu ninho... Se alguém tocar em você, eu dou um jeito. Que jeito, tio? O cara vira prato de urubu. Sentia-se protegido. Aos poucos, começou a sentir frio. Por que não trouxera blusa de lã? Agora, não podia voltar. Se voltasse, chegaria atrasado e o Tio Zaías não perdoaria, e o sonho de ter um tênis fugiria. Tinha que seguir em frente. O que continha o pacote? Não era assunto dele. Parecia um tijolo. Conforme andava, o peso aumentava. Se caísse e partisse? Deus do céu! Isto não poderia acontecer. Por isso, segurava-o com garras firmes.
Lá vai ele – um menino magrelo, cor de sela usada, olhos saltados. Encolhe-se de frio, mas segue adiante. Uma missão. O par de tênis dança à sua frente. Já passa da meia-noite. A cidade ainda ferve: carros, buzinas, freadas, mulheres indo e vindo, polícias nas esquinas. Cães vadios fucinhando latas de lixo. O frio aperta. Entregadores de pizzas, em suas motocicletas, passam velozes. O que Tio Zaías fazia? Não era da sua conta, pensou o menino. De vez em quando, futricava na mochila de Tio Zaías. Lá estavam correntes de ouro, colares, celulares, relógios, carteiras com documentos, dinheiro verde. Por um tempo, esses objetos ficavam esquecidos num canto e, depois, sumiam. Tio Zaías trazia e depois dava sumiço. Mas que frio! Pegaria uma gripe. Já sentia o nariz a escorrer...
Quatro horas andando. Estava congelado. Agarrava-se ao pacote como a um cobertor. Parecia mais magro, um fiapo andante na noite. Fome e frio. O estômago grudado às costelas. Frio e fome. Quase mais ninguém nas ruas. Daria tudo por um pão adormecido. Não, daria tudo por um casaquinho usado. Ah, lá estava o barracão, no fim da rua, envolto no negrume da noite. Muros altos. Era só pular. E os cacos de vidro? Tio Zaías dissera que, nos fundos, havia um buraco no muro. Ele foi tateando, inspecionando, tropeçando, no meio do capinzal. Sim, ali estava o rombo nos tijolos. Entrou, sorrateiro. Barracão abandonado. A fábrica de tecidos falira, máquinas enferrujadas e estraçalhadas e bancadas estavam amontoadas. Mais parecia um ferro velho. No escuro, o amontoado de objetos era um gigante negro e disforme. Escutou, perscrutou, o coração a mil. Ninguém. De repente, mãos gigantescas o agarraram, ele começou a gritar. Uma manzorra tapou sua boca. Soltava grunhidos. Aqui está o pacote, disseram, voz gutural. Um farolete alumiou o embrulho, um canivete de doze folhas rasgou o tijolo. Um pó branco saltou pelas bordas do papel. Experimentaram, gostaram. Sim, das boas. Bom menino, disseram, agora se mande daqui e boca fechada. Ouviu bem? Sim, ouvira. Foi enxotado do barracão. Onde estaria Tio Zaías? Estava cansado. Deitou-se ao pé do muro alto e dormiu.
Acordou sol alto, uma ratazana cheirando seu nariz moco. Tinha que voltar pro quartinho. Encontrar Tio Zaías. Será que ele manteria a palavra? Um par de tênis novinho. Tinha sede, tinha fome, mas o sol de inverno, aos poucos, ia aquecendo. Parou numa mercearia e ficou olhando um homem gordo comendo pão com mortadela. De tanto olhar, ganhou um pão seco do dono do armazém. Rua afora, foi roendo o pão endurecido. Carros, buzinas, gente indo e vindo, sons nas vitrines das lojas. Sentia fome, sede e sono. Dançava na sua frente o par de tênis. Apressava os pés, mas tinha a sensação de não sair do lugar. Não sentia frio: o sol morno e o calor do asfalto o aqueciam. Mais uma quadra, outra quadra, mais uma... Enfim, chegou. Passava das quatro horas da tarde. Tio Zaías já estaria em casa? Entrou no quartinho desarranjado. Tudo estava de pernas pros ares. Arre, o que havia acontecido? Na cama, estendido e desengonçado, estava Tio Zaías ensanguentado, morto. Sobre sua pança, o par de tênis novinho, manchado de sangue.