quinta-feira, 19 de julho de 2018

"Tão linda, tão alva, tão faceira, feito princesa" por David Goncalves

Dois andarilhos sujos e descabelados viajam durante dias sem dizer uma única frase. Apenas gestos, grunhidos, sinais. O balançar da cabeça, o levantar de um dedo, uma piscada de olhos. Discordam e concordam em silêncio. Caminham. Simplesmente caminham, as chinelas rotas plá-plác-plác levantando poeira fina. Sem pressa. Param na estrada em qualquer lugar. Vão pro lado que o vento vai. Enrolam-se em sacos e trapos à noite, e sonham, e espantam os pernilongos. Às vezes, zangam-se e separam-se, discordantes. Por um nada. Um cisco voando, um graveto seco. Tomam caminhos separados. Desaparecem. Mas, depois, acabam se encontrando. Tímidos e embaraçados, não conversam. Mas estão contentes por se encontrarem. Afinal, uma estrada, quando só, não é boa companheira, revira os demônios, e alguns se enforcam em qualquer árvore. O reencontro desperta emoções incontidas, conversam como dois adolescentes, e acabam dividindo a pouca comida. Nenhum observa que o outro está mais judiado, envelhecido, mais magro. Não querem ser desagradável. Estão vivos. Isso importa. Relatam façanhas. Riem, ficam sérios. Uma alma distribuída por dois corpos.

Aquela casa é farturosa. Logo depois da curva da estrada. Vamos bater na porta. Tem cachorro, sim, mas estão amarrados. Já parei ali, diz um. Ganhei um pratão de comida ainda quente, diz o outro. Ôh, de casa! Uma mulher gorda, lenço cinza na cabeça e avental sujo, vem atendê-los. Um pouco de comida, senhora. Estômago vazio. Faz dias só com frutinhas do mato. Ganham dois pratos fundos cheios de arroz-feijão e abóbora. Nada de carne, pensa um. Nenhum pedacinho, pensa o outro. Sentam no terreiro onde galinhas, patos e marrecos bicam o chão seco. Enchem o estômago. Não conversam. Uma menina desce o caminho, vem da escola. Nem dez anos. Tão linda, tão alva, tão faceira, feito princesa. Eles param de comer, as colheres no ar abafado. A menina para na frente deles e fica olhando, curiosa. Vem pra dentro! – a mulher gorda e bondosa a chama, ordenando. Ela obedece. Tem olhos verdes, observa um. Olhos de bolas de vidro, observa o outro. Querem mais? Sim, umas colheradas. Deus agradece. Voltam a comer, sem apetite. Estão empanturrados. Tem um copo de água, senhora? A boa senhora oferta duas canecas de água. Enquanto bebem, a menina, sem o uniforme da escola, sai de casa e vai em direção da lagoa, cantarolando. Mais água? Eles agradecem a água e a comida. Olham em direção da lagoa. A menina está nadando na tarde ensolarada. Além da lagoa, bois e vacas pastam no paraíso. Eles agradecem novamente. Pés na estrada, que a noite já vem. Mas sem vontade. Barrigas cheias. Ai que sono... Espiam as grandes sombras.

Eu vi como você olhou aquela menina, diz um. Viu coisa nenhuma, diz o outro. Estão deitados. Parecia querer comer a danadinha com os olhos. Vai cuidar da sua vida, seu idiota. Quem é idiota? Você! Não sei por que ando com um idiota tarado?! Tarado é a mãe, responde o outro. Aquela menina é um anjo. Pra mim tanto faz anjo ou demônio. Discussão vã. Deixa a menina em paz, diabo! Vá caçar sapo de bodoque, reponde o outro, e se deita sobre o saco e trapos. Barriga cheia. Ai que sono... E dorme rapidamente. O outro não dorme. Está bravo. Resolve pôr fim à discussão. Amizade desse jeito não vale a pena. Coloca o saco cheio de tralhas às costas e saí. Não precisa de amigo briguento. Que vá procurar a turma dele. Aves da mesma plumagem andam em bando. Arre. Pés na estrada. Que fique dormindo até ser comido por um urubu. Já distante, olha pra trás. O que vê? A lagoa brilhando ao sol da tarde e um pequeno vulto mexendo na água. Sim, é ela. Deve seguir adiante? Tão linda, tão alva, tão faceira, feito princesa. Um desejo bruto e incontido cresce dentro dele. Fera enjaulada. Segue adiante ou volta?

Encontraram a menina morta no meio do matagal, já em outra propriedade, noutro dia. Asfixiada. Abusada. Tão linda, tão alva, tão faceira, feito princesa.