Acabei de fazer meu testamento. Não pretendo deixar esta vida tão cedo, mas a gente deve se prevenir, não se sabe o que pode acontecer. Um motorista imprudente, uma bala perdida, um leitor descontente...
Deixo para os filhos todos os meus livros, filmes, revistas, CDs de música, arquivos na internet, um livro inacabado e centenas de textos publicados. Ao que parece, não gostaram muito da herança. Pombas, tirando os expurgos e as doações a bibliotecas, aí está o patrimônio de toda uma vida. Anos e anos de revirar livrarias, sebos, de procurar edições quase inexistentes; de alegrias, surpresas, decepções; de buscas na internet, achados em viagens; até livrarias da França e da Espanha entraram com sua parte, primorosos álbuns e histórias em quadrinhos. Gibis da década de 1950, filmes que alguém se lembrou de gravar da saudosa “Sessão da tarde”. Aquele livro ou aquele filme que passou pela minha juventude. Grandes ícones do cinema. Cantores da era do ouro do rádio. Coisas que não mais se encontram nem procurando com a lanterna de Diógenes. Talvez o destino disso tudo seja um sebo.
Mas meus bens não se resumem nisso. Deixo o ouro de minhas esperanças. Deixo o espaço da porta de casa até a amplidão do mundo. A imensidão de quilômetros andados que trago nos pés, o tempo de construção do conhecimento a partir das primeiras leituras. Deixo o que deixei de fazer, o vazio das mãos, as opções equivocadas, as confianças traídas, a decepção pelas impunidades. Deixo a saudade de mim mesmo, daquele garoto magro, tímido, esperançoso do futuro. As árvores em que me balancei, as trilhas que segui, as peladas que joguei, os amores que não tive. A luta inútil contra o Tempo.
Deixo também a saudade dos tempos que não vivi, dos cavaleiros da Idade Média, dos mosqueteiros do rei de França, de algum lugar no passado, onde talvez tivesse encontrado a bela jovem de espartilho, vestido longo e cabelos apanhados em coque. Deixo a inércia de minha geração, permitindo que a ética e a honestidade se desvanecessem por entre seus dedos, criando um mundo no qual se plasmou o avesso da dignidade, em que o interesse pessoal suplanta os bons princípios. Deixo a minha inútil indignação em posts, mails, páginas, tabuletas, outdoors, tambores, sinais de fumaça. Esse mundo já não me pertence. Deixo aquilo que nunca tive (mas que está em aberto para os que ficarem): fama, poder e fortuna – com a ressalva de que nunca deles necessitei e que não são necessários para se viver.
Crônica publicada no Jornal A Gazeta de São Bento do Sul em 12/08/2017.