terça-feira, 1 de outubro de 2019

"Conversa com pássaro" de David Gonçalves

O que aconteceu com o homem da casa da esquina? Sumiu. Simplesmente desapareceu. Mas tão bom, ordeiro, escrivão do cartório. Águas paradas – águas profundas. 
Os vizinhos tecem histórias. Perguntam, inventam, galhofam. Riso torto.
A mulher dele fechou a casa, emudecida, fera ferida e enjaulada. O filho, doze anos, vai pra escola mudo e assim volta, desviando-se das pessoas.
– Pois começou com aquele passarinho, escassa plumagem, ainda filhote. Um canário ou pintassilgo amarelo-pálido.
Trabalha no cartório, cuidadoso, circunspecto, segundo as leis. Pouco sorriso, poucas palavras, óculos com fundo de garrafa no nariz afilado. Um dia, vindo pra casa, caiu de uma árvore, o filhote de pássaro. Puft, saltitava assustado à sua frente. Ele, baixando-se, o pegou cuidadosamente e, com as mãos em concha, o trouxe para casa, zeloso. Emprestou do vizinho uma gaiola enferrujada.
Também, diz alguém, quem não fugiria de uma mulher enraivecida? Vivia gritando com ele. Zeca, faz isso. Zeca, seu banana, por que ainda não recolheu o lixo? Zeca, sua besta, nem sei por que casei. Zeca, por que fica paparicando esse passarinho? 
Chegava em casa de tardezinha e ficava paparicando o passarinho, a mão dentro da gaiola, ou os dedos finos enfiados entre o aramado. Acariciava. Imitava os trinados. O passarinho trinava mais, mais, mais. Dava vida ao desalento das casas no entardecer.
Ai, Jesus, por que casei com um joão-ninguém? Abandona ele, comadre. Você não está tão estragada assim. Ainda dá um bom caldo. De que jeito vou viver? Tem o menino. Precisa de um pai. Então, não reclama, carregue o andor, feche os olhos e aceite o destino. Mas ela não se contentava. Maldito passarinho. Por que não dava fim nele? Durante a ausência do marido, a ave se quedava morta. Mas, quando ele abria o portão, ele esvoaçava como louco e começava a trinar. Os vizinhos espiavam por cima do muro. Vem jantar, Zeca. Estou sem apetite. Deixe esse pássaro aí, já é noite. Depois eu vou, deixe a comida em cima do fogão. Se você me tratasse como esse pássaro, eu seria rainha. Ih, mulher, me deixe em paz. Ele vive tão sozinho... Sozinha, vive eu, um burro de carga. Lá vinham as reclamações, desaforos. Vou dar fim neste passarinho, arrematava.
Enlouquecia? Como vai, meu pequerrucho? Trimtriimmmfiufióóó! Ah, sentiu saudade do papai? Trimtriimmmfiufióóó! A velha jararaca não te maltratou, não é? Ela é bem capaz. Trimtriimmmfiufióóó! Canta, canta, na minha mão, passarinho. Trimtriimmmfiufióóó! Quer saber o que fiz hoje? Trimtriimmmfiufióóó! Fiz nada, fiquei com saudade de você. Trimtriimmmfiufióóó! Ah, eu vivo preso como você, meu pequerrucho. Aquilo lá é uma prisão. Você me entende?. Trimtriimmmfiufióóó! Tenho vontade de jogar tudo pro ar. Assim, pro ar. Trimtriimmmfiufióóó! Hoje, você me parece triste. (...) Você quer ser livre? (...) Eu também. Trimtriimmmfiufióóó! Estou com essa casa até aqui. Trimtriimmmfiufióóó! Me tratam como um aleijão. (...) Sou um escrivão de merda. (...) Um dia, jogo tudo pro ar e caio na estrada. Trimtriimmmfiufióóó! Ah, gostou da ideia! Você também quer fugir, não é? Destinos iguais. Trimtriimmmfiufióóó!
De manhã, antes do café, lá estava o marido trocando o potinho de água e repondo o alpiste, conversando, acariciando-o, enquanto os trinados acordavam a vizinhança. Quando batia o portão e saía para o cartório, os trinados cessavam e o pássaro quedava-se como morto, entristecido. Pela casa e quintal, ouviam-se as reclamações da mulher. O esfregão da vassoura com raiva no piso gasto.
Todos os dias a mesma coisa.
Vai que, um dia, ele volta do trabalho e depara, aturdido, a gaiola vazia. Sentada no sofá, a mulher ria. Ele saiu no quintal imitando, desesperado, meio tonto, os trinados: Trimtriimmmfiufióóó! Quem sabe, estava na copa de alguma árvore. Nada. Quedou-se na frente da gaiola, já noite. Passarinho mais besta, dizia a mulher, risonha. O gato da vizinha já o papou. Dentro da gaiola, uma pena. Calmamente, ele a guardou no bolso. Tinha uma expressão tão estranha. Vem pra cama, Zeca. Era só um pássaro. O mundo não se acaba por isso. O gato do vizinho passou à sua frente. Parecia mais gordo. Sai, satanás! Deu-lhe um empurrão com os pés.
No meio da noite, quase madrugada, insone, poucas estrelas brilhando, levantou-se, contemplou a gaiola vazia. Sem nenhuma saudação de despedida, a passos firmes, abandonou a casa. As comissuras da boca contraíam-se desdenhosamente.
Amanhecia, a rua envolta em neblina, deserta. Indeciso, pisou as lajotas molhadas e escorregadias. Adeus, mundo descolorido. De repente, quando passava por debaixo de uma árvore, algo pousou sobre seu ombro. Reconheceu de imediato o pássaro. Meu pequerrucho, balbuciou. Trimtriimmmfiufióóó! Vamos juntos pra esse mundão.
Lá se foram, livres, completamente felizes.