Naquela noite, o pai chegou em casa no meio da noite. Estava nervoso. Tirou todos da cama, puxando os lençóis e empurrando.
– Vamos dar no pé. Isso é bananeira que já deu cacho – quase berrou, agitado.
Tinha bebido. Cheirava a alambique. Todos nós – a mãe e os meus quatro irmãozinhos – conhecíamos aquele cheiro.
– O que houve, homem? – quis saber a mãe, um tanto apavorada.
– Na estrada eu vou contando. Vão pegando as coisas e colocando na Kombi.
Noite sem lua, opaca. Poucas estrelas. Nuvens pesadas se agrupando.
– Tem alguém atrás de nós? – perguntou a mãe. – O que você aprontou dessa vez?
– Vá colocando o que pode na Kombi. O mais depressa.
Ela foi pegando uma frigideira de ferro fundido, uma panela grande, também de ferro, alguns pratos de ágata, copos de vidro americanos, duas facas gastas, colheres e garfos velhos. O pai pegou uma foice e um machado, meio saco de feijão e outro de arroz, uma lata de banha de porco com carne.
– Chega! – ordenou. – Senão a Kombi não aguenta.
Fomos atochados dentro dela e o pai, excitado, queria ligar o motor e não conseguia. Houve xingos. Mas, de repente, o motor deu sinal de vida. Saímos aos trancos.
– Que vida! De um lado pra outro, sem sossego – disse a mãe, choramingando.
– Cale essa boca – o pai respondeu. – Sempre protegi vocês. Não vamos passar fome.
– Por que não trouxemos a Pereba e os filhotinhos, mãe?
A cadela de estimação de pelos amarelos.
– Ela se vira. Já está bem crescida. Caçadora como quê – o pai respondeu, enquanto dirigia a Kombi na estrada piçarrada.
– Por que não pegamos o Rajado? – choramingou minha irmã.
– Gato que se vire. Não gosta de viajar, de mudar de casa. Tem gato que volta pra casa até 500 km – o pai respondeu, ainda mais zangado. – Você pode conseguir outro bichano.
Depois todos se aquietaram. Só os roncos da Kombi: estava com o escapamento rebentado. De repente, a mãe voltou a dizer:
– Pelo menos, diga pra onde estamos indo!
Eu estava com sono. A estrada esburacada fazia a Kombi sacolejar e bater latas.
– Eu digo quando chegar – respondeu.
Meus irmãos dormiam. O vento da noite, misturado com a poeira vermelha, entrava pelas janelinhas e refrescava o calor do verão. Um casal de coruja voava diante dos faróis e o pai praguejava. Ouvi um resfolegar de cachorro no colo de Maninha.
– O que está levando aí? O que é?
– Não é nada – ela se encolheu, protegendo o colo. – A barriga que roncou.
– Roncou, é? Deixa eu ver.
– Fale baixinho.
Me mostrou: a filhote da cadela. Estava enrolada nus trapos. Sorri e me aquietei. O pai, se viesse a saber, era capaz de jogá-la janela afora, a Kombi andando.
Fiquei olhando uma estrela. Ela olhando pra mim. De vez em quando, o arvoredo a cobria. Outra vez, uma nuvem.
– Então, não vai contar o que aconteceu? – a voz áspera da mãe, desgostosa.
Eu cochilava.
– Vamos parar nesta curva descampada e descansar. Logo adiante é o rio Ivaí. A balsa só funciona de manhã. Conheço o balseiro. É capaz de abrir o bico.
– Vai contar? Boa coisa não é. Se eu fosse nova, abandonaria você. Estou farta.
O pai parou a Kombi. Abriu a porta, saiu na noite. Acendeu um cigarro. Eu espiava a estrela por entre o arvoredo.
– Aquele imbecil. Tinha que se meter logo comigo? Capataz burro. Estava bêbado. Veio pro meu lado ameaçando, socando. Eu estava quieto, bebendo. Me chamou de vagabundo, pau-d´água, que era um moleirão. Então, o sangue ferveu. Aconteceu: saquei da faca e cortei o peito dele. Morreu ali mesmo, os olhões estalados.
– Você matou!
– Foi legítima defesa. Não sou assassino. Aquela gente viu.
– Ai, meu Deus!
A estrela piscava pra mim, quase apagada. Dormi de vez.