A moça desenha sobre o papel. Atrás de si há um pequeno varal com desenhos que fizera antes. O vento os balança suavemente. Uma menina se aproxima, olha-a com interesse. A moça oferece-lhe um lápis e papel. Outras crianças se aproximam e, agora, a moça orienta-os com a melancolia de quem perdera a guarda do filho. A moça é moradora de rua, mas sua vida não pode ser resumida a isso.
Em volta, o jardim está repleto de toalhas sobre a grama, onde famílias fazem piquenique. É fim de tarde e o sol é ameno. Clima perfeito. Fotos registram um sábado feliz no jardim de um museu. A casa de Ottokar Doerffel, com seus jardins e lagoa, é um dos espaços bucólicos da cidade que convidam à arte e à contemplação. Não por acaso abriga o Museu de Arte de Joinville.
Meses atrás, o local passou a ser usado por jovens para tráfico e consumo de drogas, o que afastou o público do local. Os moradores de rua que costumam usar o espaço foram, imediatamente, acusados. A vizinhança sugeriu fechar o local com cerca.
Há duas questões no parágrafo acima que precisam ser repensadas: a primeira é que cercar um local público é assumir a incompetência pública para cuidar de um bem; a segunda e importantíssima questão diz respeito à forma ortodoxa com que olhamos para a sociedade. Durante o processo de “limpeza” do local, verificou-se que os moradores de rua, usuários de drogas, não eram os responsáveis pelo tráfico, nem pelas depredações. Pasmem, queridos! Entre outras coisas, foram encontradas bebidas escondidas em mochilas que chegavam ao jardim do museu pelas mãos de jovens estudantes das classes média e alta. Casos de coma alcoólico foram presenciados às portas do museu.
Artistas vêm colaborando com a equipe do MAJ para tirar a pecha higienista e mostrar que a paisagem do museu não é monocromática, mas uma colcha de retalhos de diversos segmentos, culturas e valores. Ações de apoio do Centro POP, do Consultório na Rua, vem possibilitando a convivência pacífica das diversidades. A gestão criativa, em que todos participam de tudo, pode fazer a diferença e devolver à casa de Ottokar seu caráter agregador.
Paralelo a isso, a discussão sobre segurança, drogas e respeito, parece claro, deve estar também no seio familiar, na orientação aos filhos. Omissão e negligência colocam os jovens em caminhos tortuosos e tristes. A sociedade precisa discutir suas demandas sem as amarras retrógradas e obsoletas que nos impelem ao preconceito e à hipocrisia. Em 2018 não cabem mais discussões rasas, unilaterais e arcaicas, faz-se necessário um mínimo de consciência social. É preciso restabelecer a dignidade humana, e isso pode começar em um jardim, em um desenho à lápis numa folha de papel.
(Crônica publicada no jornal A Notícia, em 04/05/2018).