O homem notou que a sua mulher não estava bem. Fechava dolorosamente os olhos, contorcia o corpo e o rosto, tinha constantes arrepios.
– Estás sentindo alguma coisa, amor?
– Desde ontem, estou sentindo uma coisa, me coisando por dentro.
– Uma coisa te coisando? Especifique isso melhor.
– Não consigo. É uma coisa indefinível, não sei o que é, nem onde começa e onde acaba. Mas que é horrível, é.
O homem se armou de autoridade e sentenciou:
– Nesse caso, precisas ir a um médico.
– E o que vou falar pra ele? Que tem uma coisa me coisando? E talvez não seja o caso de médico, pode ser de psicólogo ou de pai de santo... será que não existe nenhum especialista em coisa, um coisólogo?
– Vai ver, essa coisa sem nome nem existe. Um filósofo já disse que o limite de nossa linguagem é o limite de nosso mundo. Para nós, não existe aquilo que não podemos denominar. Pronto: você não tem nada!
– Ah é? Esse tal de filósofo devia ser louco. Se eu não sei o nome complicado daquelas peças de automóvel, então elas não existem? Então meu carro não pode ter defeito, mesmo que pare no meio da rua? Se você não conhece um cara chamado Clarimércio, então ele não existe. Mas eu conheço. Foi meu primeiro...hum... namorado. É isso? É porque o teu filósofo decerto nunca sentiu esta coisa.
– Essa coisa que está te coisando? – caçoou o marido, já desconfiado desse tal Clarimércio.
– Não fica me tirando, seu bruto. Quanta coisa existe no mundo que ainda não tem denominação. Como se referir a algo que você sente, mas não sabe o que é? Só se inventarmos palavras na hora. Mas até para inventar palavras é preciso ter certa autoridade. Eu não sou nenhum Evanildo Bechara. Além disso, “coisa” é uma espécie de coringa, serve para as mais variadas situações. Surpresa: Que coisa! Revolta: Tira essa coisa daqui! Informação: Quero te contar uma coisa. Expectativa: As coisas têm de melhorar. Saudação: Como vão as coisas? ... e assim vai.
– Agora você virou filósofa. Imagine a situação de nosso Pai Adão, encarregado de nomear as coisas do mundo. De onde ele tirou o nome para árvore, pedra, rinoceronte? Pois vamos seguir o exemplo de Adão e vamos descoisar esse seu problema: que tal dizer que está sofrendo um desvirtuamento homeostático, se é que isso já não existe? Pronto, inventamos mais um problema para a medicina.
– Não quero inventar problemas. Quero me livrar desta... desta coisa.
– Então se explique para o médico. Para tudo há uma solução. Na certa, ele vai te mandar tomar uma aspirina.
(Crônica publicada no jornal Notícias do Dia em 19/10/2016)