O Passat velho e carcomido de ferrugens parou em frente da delegacia. Desceu o rapaz, moreno, já com alguns cabelos grisalhos. Trazia no rosto o mistério de todas as coisas.
– A mulher ainda está aí? – perguntou ao cabo que, naquele momento, palitava os dentes com um pedaço de madeira.
Era terça-feira. Seis da tarde. O sol agonizava. Os raios vermelhos misturavam-se com o chão também vermelho. Longo tempo durava a estiagem. O ar seco deixava muitos narizes da povoação sangrando. Havia, também, a maldita tosse de cachorro – uma tossezinha danada de ruim onde o indivíduo emite uns grunhidos horríveis, como rato acuado.
– A mulher ainda está aí? – insistiu o forasteiro, trêmulo, impaciente.
– Seu nome, por favor?
– Simeão. Agora, me diga, a mulher ainda está aí?
– Simeão de quê?
– Que importância tem?
– Ora – enfezou-se o cabo –, tem muita importância sim. Vá dizendo!
– Simeão...
Parou indeciso. Depois completou:
– Simeão Gama e Filho.
O cabo não perguntou mais nada. Apenas limpava os dentes com a lasca de madeira. Levantou-se, arrumou a barriga dentro das calças, alisou o cabo do revólver. Quase final de expediente. Estava com a boca seca. O ar seco castigava. Chuva mesmo só na mudança da lua. O suor empapava o gasto uniforme. Naquele momento, sofria por um gole de chope gelado no bar de seu Josias. Por ele, fechava rápido a delegacia e corria ao bar. Vinha, agora, aquele forasteiro enrolado, em busca de informações sobre a morta.
– Fiquei sabendo que trouxeram um corpo de mulher, que boiava no Ivaí...
– Ãhn... Sim. O corpo já estava fedendo, feio. Dava até nojo. Coisa feia, horrível... Já viu situação assim? Um peixe, talvez bagre, dentro das vísceras!
– Já enterraram? – perguntou o moço, sério, olhos franzidos.
– Claro! Guardar em geladeira o corpo? Daquele tamanho não entrava em geladeira alguma. Depois, na cidade, as geladeiras e freezer são pequenos. Nenhum comerciante iria emprestar o freezer para guardar o corpo inchado. Pois, acredite: no rosto só os buracos dos olhos. Parecia filme de assombração. O Damaso nem quis botar as mãos. Machadinho, o médico, ficou de longe. Mandamos pro necrotério. Nem o coveiro aguentou muito tempo. Escuta, o senhor é parente?
Uma Rural velha, com um alto-falante, passou vagarosa à porta da delegacia, um som estridente: “Povo de Deus, hoje à noite, na Igreja da Libertação, o grande dia! No coreto da praça, diretamente de São Paulo, o apóstolo de Cristo, o pastor Altamiro Boa-Fé! A noite dos milagres! Reumatismo, câncer, diabetes, nervos, aleijões!”
– É o pastor Rosário. Velho maluco! Reza pulando, como se estivesse possuído. Esse Boa-Fé faz milagres. Eu duvido. O senhor é parente?
Mas o som estridente do alto-falante não deixava a conversa prosseguir.
“Hoje” – dizia o pastor –, “ o Diabo dançará em tacho quente. O Diabo será expulso na marra, debaixo de reza. Grande é o Senhor; inúteis os que tentam derrotá-Lo.”
– Este pastor está com o espírito no corpo! Já assistiu alguma reza dele? Não. Bem, a Igreja do danado tem muitos seguidores.
– A mulher ainda está aí? Ou não? – voltou a perguntar o moço, irritado.
– O senhor é parente?
– Não. Estou procurando uma pessoa que há muito não vejo.
– Desaparecida? Faz tempo?
– Oh, muito tempo... Então ouvi falar deste caso. Bem, a gente nunca deve perder a esperança. O mundo sempre reserva surpresas. Fiquei sabendo. Então, eu vim. Quem sabe, é...
Novamente, a Rural do pastor passou na frente da delegacia. As palavras se perderam no ar morno da tarde.
– Esse pastor já está abusando. Por que não enche o saco em outra cidade?
– Sinto que, desta vez, estou certo.
– Ãhn. Pois é. Na minha opinião, alguém matou e jogou no rio Ivaí. Nesta terra de pés-vermelhos, só bandidos, parece. Mistureba. Cuia branca, amarela, preta e de sela usada. Os pardos sujam. Bem, também não é assim. Tem pé-vermelho bom. É que as coisas ruins correm. Minha opinião é que o Mal é mais competente. Sabe como é...
– Havia fotos? Queria ver – disse o moço, voz soturna.
– Aqui estão. Foi o japonês que fez as fotos.
Recolheu as fotos nas mãos. Olhou, tornou a olhar, conferiu.
– Vê que coisa horrorosa. Perdeu os olhos. No lugar, só os buracos. Parece que alguém arrancou seus olhos com formão, como se esculpisse madeira. O japonês é bom fotógrafo. Aliás, como deveria ser... A delegacia não lhe paga um centavo. O delegado vai dizendo: “Japa, venha tirar as fotos. É urgente!” E lá vai o Japa, mancando, que o danado é coxo da perna esquerda. Receber? O delegado fala grosso: “Ora, seu amarelo nojento, se insistir em receber essa quirela, eu te prendo. Conto pra todo mundo sobre as fotografias de mulheres nuas que você tirou no bordel da Maria Alegre. Pensa que não sei? Nada me escapa.” Assim, as fotos ficam de graça. Mas, a cada dia, a qualidade piora.
– O cemitério? Onde fica?
Mas o cabo queria falar. Esquecera do final de expediente. Sequer se lembrava do chope geladinho.
– Conhece a mulher? Ah, não. Estava inchada. Fotos assim só acontecem de quando em quando. Todos aqui se lembram da Madalena que se apaixonou por um padre... Se suicidou. Foi enterrada, desenterrada. Sua alma ainda vagueia por aí.
A Rural do pastor passou esgoelando o convite para o culto naquela noite, que se prenunciava abafada. O cabo perdeu a paciência:
– Que bosta! A terceira vez que esse merda passa!
Tomou fôlego, coçando a barriga, em seguida as virilhas. O calor sufocante ferira ambas. Cada vez que as coçava, o vermelhidão aumentava, e ele soltava uns grunhidos.
–Nem faz tempo, quatro senhores foram pescar.
Encontraram uma mulher boiando. Deu o que falar. Foram acusados de matá-la. Coitados, estavam mamados de cachaça. O promotor não dá tréguas. Gosta de apertar criminosos. De vez em quando uma louca pula no rio. Também estava sem olhos. Mas, dentro da barriga, não havia peixe algum. O Japa tirou as fotos. O caso deu pano pra manga. Acredite. Os caras se viram embrulhados. Acho que ainda vão pra cadeia.
– Por favor, o cemitério? Onde fica? – o forasteiro implorou, voz engasgada.
– Naquela direção, no final da rua.
Agradeceu, despediu-se. Acelerou o Passat, o cabo pensou: “Cada maluco no seu galho. Está na hora de eu pedir minha aposentadoria”. Estava com saco cheio. Paciência esgotada. Então se lembrou do chope geladinho.
Já anoitecia. O coveiro andava tomando a cachaça de todos os dias por aí. Mas o garoto, filho mais velho do coveiro, foi mostrar onde a mulher afogada estava sepultada. O chão ainda mole. Cova rasa, como indigente. Do lado do cemitério, vários moleques sujos de terra jogavam bola num terreno baldio. O estranho forasteiro permaneceu mudo, olhos vazios, absorto. Tudo, ao redor, era incolor. Cemitério pobre, aquela parte. Os mausoléus ficavam do outro lado – os ricos, os abonados e bafejados pela sorte. Ali, cruzes numeradas espalhadas pelo chão vermelho. O garoto, enquanto o estranho olhava a cova, distraiu-se com a pelada dos meninos. De repente, o tiro seco. O garoto voltou-se, assustado. O rapaz agonizava em cima da sepultura, o revólver ainda nas mãos.
No Passat aberto, a chave na ignição e uma folha escrita e assinada: “O nome dessa mulher é Rosana. Ela era de Jussara. Eu a conheci no meretrício de Cianorte. Fui eu que a matei, por ciúmes. É o meu primeiro crime. Meu nome é Simeão. Sou de Londrina. Me enterrem ao lado dela”.
O cabo, naquele momento, já estava saboreando o chope gelado. Ficou indignado, ofendido, quando alguém veio avisá-lo. “Porra”, exclamou, “a puta que pariu todo mundo.” E voltou a tomar o saboroso líquido. “Que venha abaixo a terra, mas não vou deixar de tomar mais um.” Depois, concluiu: “Logo vi que o intruso não tinha boas intenções”.
Na praça, o povaréu se espremia para assistir os milagres do pastor Altamiro Boa-Fé.